Passion é o mais recente projeto da Quinta dos Vales que agora se apresenta no Museu Municipal de Faro. Com pompa e circunstância, esta iniciativa consegue criar em quem visita o claustro do museu, sensações de perplexidade na forma como o marketing, aliado à ignorância de quem compra estas ideias, é capaz de construir absurdos e vender gato por lebre.
Existe uma linha ténue que delimita o campo entre a arte e o poder, ou pelo menos entre a arte e quem tem dinheiro. Esta relação, também ela de amor e ódio, não é nova. Sempre convivemos com ela desde há longos tempos, quando a arte se movia nos meios eclesiásticos dos feudos de outrora, e ainda hoje prevalecem alguns segmentos que põem em confronto a causa e o efeito, a arte e o seu propósito.
Existem muitos mecanismos que são requintados e que se vestem com linhas de contemporaneidade para conquistar um mercado de arte que necessariamente serve a muita gente, criando situações que tiram partido do deficiente sistema de sustentabilidade das carreiras artísticas, em projetos que denotam sentidos de posse sobre a obra e vassalagem por parte dos artistas.
Aqui bem perto, faz tempo que venho acompanhando este projeto travestido de arte, que criou uma Dança dos Ursos e que agora tenta vender a “tal” de Passion. Trata-se de uma iniciativa pouco inédita, seguindo a linha das famosas Vacas que povoaram o mundo com as suas intervenções artísticas, mas cujo enquadramento que aqui se afigura nada tem a ver com os criativos bovinos.
O catálogo da exposição indicia um profundo vedetismo e mesmo ignorância, quando se afirma que as ideias são inovadoras e se dizem disparates que mais não são do que vender a imagem de vinhos associada à promoção do seu dono.
Anteriormente, os Ursos foram apresentados como um projeto com fortes pretensões artísticas e com um manifesto alternativo sobre a evolução, assinado pelo “dono” Karl Heinz Stock, que o sonhou em Berlim e o veio concretizar aqui no Algarve. O próprio refere que “eu e a minha equipa de escultores e artesãos (KHSculptorGroup) começámos a desenvolver as primeiras esculturas de ursos de tamanho quase real”, mas tal não atribui necessariamente protagonismo aos restantes artistas e artesãos e os contornos sociais da iniciativa não conseguem disfarçar o desenraizamento do mesmo, num Algarve culturalmente segmentado e que pouco se tem desenvolvido em matérias de cooperação e sustentabilidade por via das parcerias na criação artística de forma socialmente participativa.
Podemos assistir aqui a uma ideia que evidencia suficientemente os seus fracos contornos e que vem estabelecendo uma rede alargada de patrocínios a denominados artistas da região, numa lógica de funcionamento que confere ao patrocinador central uma verdadeira atitude de marchand das artes dos tempos modernos, revelando poder de investimento e sentido de posse das obras e da sua autoria, movendo e minando o que deveria ser impermeável: a criação artística e artesanal independente!.
Com todo o respeito que tenho pelos artistas participantes, alguns dos quais até conheço e cuja amizade partilho, facto é que foi uma má aposta terem aceite participar neste projeto, pois a prepotência de um discurso aparentemente romântico revela agudas pontas de metal que perfuram, corroem sem sentido e intensificam um universo de indecisão entre o belo e o sublime que existe no horror que podemos encontrar nestes objetos artísticos.
O uso que deles se tem feito não augura nada de diferente e condiz com o tratamento que é dado ao assunto. Percebe-se nas entrelinhas que todos os tostões dados aos artistas pela elaboração de uma intervenção num urso ou elefante revertem a favor do marketing de uma quinta de vinhos que, com posse administrativa dos mesmos, os espalha como um vírus que povoa o Algarve com a máscara do bem social e conivência dos artistas e das entidade públicas. Que o digam o Governo Civil e o Turismo do Algarve, que escreveram textos para o catálogo tecendo fartos elogios a esta “dança apaixonada”.
Por último: o Museu Municipal de Faro é aquele que legitima o projeto, dando albergue à exposição “Passion” e erraticamente aceitando não só a promoção da arte como das vendas, que, embora sejam da responsabilidade do promotor, não deixam de nos fazer questionar a política cultural do principal Museu Algarvio.
Em matéria de gestão cultural, confunde-se também aqui a programação artística com animação cultural, pois de facto estes elefantes vêm animar o pátio do museu, mas pouco acrescentam e pouco legado deixam para a construção imaterial da cultura e identidade da comunidade algarvia.
Seria importante que este tipo de iniciativas servisse de mote para que os autarcas da região, aqueles a quem os tostões ainda lhes assistem, pensassem duas vezes no papel da cultura e que deixassem os fogos de artifício de lado, pois o Algarve, no que à ação pública na cultura se refere, tem sido mal tratado por eventos megalómanos como Capitais de Cultura desconexas e monstros allgarvianos, que não tomam em conta a realidade local, promovendo um Algarve artificial que desconsidera os algarvios.
Autor: Jorge Rocha é Artista e Produtor Independente