Passeei (estilo redacção escolar pós-fim-de-semana) num destes fins-de-semana numa parte dos territórios serranos do Sotavento algarvio, assolados pelo grande incêndio de Julho de 2012.
Aquando do fogo, escrevi neste espaço que a sua ocorrência, bem como o terrível rasto de destruição que deixou, era a materialização de um conjunto de sintomas, e não um mal em si mesmo.
Também afirmei então, e repito-o agora, pois é importante reter esta ideia em definitivo: o fogo faz parte da paisagem mediterrânea, da qual o Algarve apresenta tantos e tão marcantes traços.
Ser mediterrâneo é então, entre outras coisas, conviver com o fogo. Tivesse este aspecto da identidade mediterrânea a mesma atenção que outras, mais folclóricas e popularuchas, e talvez o cenário ao nível dos incêndios fosse diferente. Adiante…
Neste ecossistema, todas as espécies estão, em maior ou menor medida, preparadas para essa ocorrência. Desde os sobreiros às estevas e medronheiros, passando… pela gente.
Esta Serra que hoje conhecemos já pouco tem da sua originalidade. Desde que o Homem aqui chegou, e iniciou a sua intervenção, com maior magnitude nos últimos séculos, e um destaque ainda mais particular para as últimas dezenas de anos, marcou e tornou-se parte integrante desta paisagem e do seu funcionamento, criando sistemas organizacionais, com invariável ligação, mais ou menos directa, ao sector primário.
E assim se fazia a vida na Serra, com engenho, resiliência, muita agrura e… muito fogo.
Mas, enquanto gente resistente ao fogo, este raramente levava a melhor. Uma paisagem povoada e trabalhada significa que o combustível disponível (neste caso matos descontrolados) é pouco e está organizado. Assim, para além de uma reduzida velocidade de propagação, os focos de fogo que surgiam (muitas vezes de forma espontânea), eram prontamente detectados e atacados (sem teorias da tese, e teóricos mascarados de operacionais, com boinas à militar, vaidades das quais as chamas não se compadecem), nunca alcançando proporções de grande incêndio.
Voltando ao passeio, e passado o fogo das chamas, a Natureza, como sempre, já está a fazer a sua parte, regenerando árvores e arbustos, fazendo correr riachos, que com água animam uma vida latente, fazendo ressurgir pastos e matos, e toda a restante biodiversidade.
No entanto, não há sinais de gente.
A pouca que havia antes foi forçada a fugir, e regressar a uma mão cheia de nada, e sem qualquer presente ou futuro, não faz sentido. Seja em nome de sonhos urbanos, pés na areia, ou simplesmente empurrada para o esquecimento porque a modernidade lusitana, dos estádios sem viabilidade, das auto-estradas amplas e estendendo-se até ao horizonte (como um deserto, e mais ou menos com os mesmos utentes), da edificação abundante e da banca parasitária se envergonhou das suas raízes rurais, é gente serrana o que falta à Serra.
O que temos para este território é literalmente uma mão cheia de nada. Um vazio de ideias, um vazio de estratégia e, pior que tudo, um vazio de interesse.
Basta ler o que os Instrumentos de Gestão Territorial, com destaque para os Planos Directores Municipais, propõem para estas áreas: nada ou um conjunto de chavões vãos. E as revisões que se avizinham não auguram nada de bom. Pelo que já pude ver, é um deserto de propostas e de ferramentas para revitalizar a Serra e das suas actividades características.
É o mal de um Algarve que continua sentado em cima de uma betoneira, de olhos postos única e exclusivamente no Litoral…
Por mais que tentemos alterar esta realidade por decreto, a vida do dia-a-dia faz-se com gente e não com eventos, a terra trabalha-se com alfaias e não com impressos, a floresta é uma cultura e não uma transferência bancária mensal, e chuva, Sol, vento e fogo obedecem a regras sobre as quais não podemos aplicar nem o nacional-porreirismo nem o chico-espertismo.
Podemos despejar uma montanha de dinheiro sobre a Serra, reerguer paredes, organizar mil e um bailaricos e festarolas solidárias, plantações com laivos carnavalescos e todo um lote de iniciativas, indubitavelmente cheias de boa vontade. Mas, infelizmente, esforços desprovidos de efeito.
Porque a Serra e os seus problemas apenas se resolverão no dia em que conseguirmos recuperar a sua dinâmica. E para isso temos que atrair gente à Serra, temos que criar vida quotidiana. Enquanto não estancarmos a sangria de população destas paisagens, tudo o que fizermos serão cuidados paliativos.
Inverter a situação dependerá da capacidade que tivermos de recuperar os modelos ancestrais de exploração das terras “xistentas”, na designação da escola de Orlando Ribeiro, adaptando-os à contemporaneidade.
Encontrar o como é um tremendo desafio, que não se afigura minimamente simples ou fácil. Mas a alternativa, a incapacidade de encará-lo, é um verdadeiro fogo de Inverno, que deflagra nas chamas que chegam no Verão.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)