O Algarve viveu por estes dias, há 125 anos, verdadeiros momentos de alegria. O acontecimento não era para menos: Faro, Loulé, Albufeira, S. Bartolomeu de Messines e São Marcos da Serra ficavam servidas pela via acelerada e o comboio chegava finalmente à região.
Trinta e três anos depois da inauguração do primeiro troço de caminho de ferro em Portugal (de Lisboa ao Carregado) e 25 após a chegada a Beja, os silvos da locomotiva ouviam-se enfim no Algarve.
Apesar de a primeira viagem direta entre Barreiro e Faro ter ocorrido a 21 de fevereiro de 1889, seriam necessários mais quatro meses para a abertura efetiva da linha. Isso aconteceu a 1 de Julho de 1889, fazem hoje, precisamente, 125 anos.
Terminava assim um longo calvário iniciado havia quase trinta anos. Desde logo, as disputas parlamentares entre deputados do Norte e do Sul do país e depois também entre alentejanos e algarvios.
Se os primeiros conseguiram inclinar a assembleia a seu favor, tornando a construção da via férrea no Norte prioritária, os segundos não convenceram a câmara dos seus intentos. Em causa estava o término do caminho de ferro, que os representantes do Alentejo, grosso modo, desejavam junto ao Guadiana, com vista a uma ligação à Andaluzia.
Alegavam ainda as vantagens económicas de a via se estender até às Minas de São Domingos, ao invés de atravessar o centro da serra algarvia deserta e comercialmente hostil.
A ligação ao Algarve far-se-ia então de barco pelo Guadiana até Vila Real de Santo António, e aqui de novo em comboio, numa linha que percorreria todo o litoral da região.
Contra tal diretriz se opunham os algarvios, defendendo antes a entrada no Algarve pela Portela dos Termos, na serra de São Marcos, dirigindo-se depois a S. Bartolomeu de Messines e daqui a Faro. Lembravam que, desta forma, não seria necessário um transbordo, com os inconvenientes daí advindos para passageiros e mercadorias.
Embora a decisão, a contento dos algarvios, tivesse sido tomada nas sessões parlamentares de 25 e 26 de junho de 1862, e a abertura à exploração tivesse sido fixada, poucos anos depois, para 1 janeiro de 1869, a construção de tão desejado melhoramento dilatar-se-ia no tempo.
Se é verdade que todo o trabalho era braçal (só nas imediações de S. Bartolomeu de Messines trabalhavam, em fevereiro de 1876, cerca de 600 pessoas), sem recurso a maquinaria (tão-somente a pólvora, picaretas, pás, alcofas, etc.), e que era necessário escavar outeiros e construir aterros, já para não falar nas obras de arte ou nos edifícios para as estações ou passagens de nível, não é menos verdade que esta linha raras vezes foi considerada prioritária no contexto nacional.
Obras levaram décadas
Um litígio entre o governo e a companhia construtora, de nacionalidade inglesa, veio dilatar ainda mais a construção.
As paralisações frequentes, aliadas às diferentes secções em que decorriam as obras, provocavam quase sempre situações caricatas. O lanço entre Faro e Boliqueime foi dos primeiros a ficar concluído, mas seriam necessários muitos anos até que, por ele, circulasse alguma composição. Enquanto isso, era um troço fantasma e só mesmo algum caracol se aventurava a andar sobre o carril.
No entanto, em 1875, um terrível acontecimento veio dar um incremento aos trabalhos: a seca. As Câmaras Municipais da região, face ao flagelo da fome que afetava os algarvios, pressionaram o governo para a abertura das obras, não só na ferrovia, como nas estradas.
De tal forma que os lanços da linha entre a Portela dos Termos e as Silveiras (São Marcos da Serra), e entre este ponto e Boliqueime, tinham o leito praticamente concluído em dezembro de 1876. Em contrapartida, entre Casével (Castro Verde) e a Portela dos Termos, muito havia a fazer. Em 1878, nova seca se faz sentir na região e as obras sofrem novo impulso.
No entanto, passadas as adversidades climatéricas tudo voltava ao mesmo, ou seja, à suspensão dos trabalhos. Foram muitos os algarvios que envelheceram e faleceram sem ouvir o apito do progresso rasgar os céus.
“Nem Majestades, nem Altezas, nem ministros”
A construção a partir de Casével (onde o comboio chegou em dezembro de 1870) iniciou-se apenas em 1883, sendo aprovados em 1885 o projeto e orçamento da secção entre o rio Mira e São Marcos.
A 3 de junho de 1888 abria à exploração o troço de Casével a Amoreiras/Odemira.
Oito meses depois, realizava-se a primeira viagem técnica entre o Barreiro e Faro. Só faltava agora a inauguração. Mas se a construção da via teve, como vimos, parto difícil, uma outra contrariedade esperava os algarvios – o desprezo.
Entre o fim de fevereiro e junho de 1889, vários periódicos lisboetas noticiaram amiúde a presença de individualidades na inauguração do caminho de ferro do Algarve, fosse a família real, que sempre participara nestes momentos, ou membros do governo.
Porém, agendado o dia festivo, 1 de julho, uma segunda-feira, todos declinaram o convite, e uma frase ficou célebre: “Nem Majestades, nem Altezas, nem ministros”.
Para alguns círculos representativos do Algarve, a sua ausência foi considerada como “a maior humilhação que os altos poderes do Estado podiam ter infligido aos brios de um povo que se regia por instituições constitucionais”.
Mas os algarvios não desanimaram e organizaram durante três dias uma manifestação de regozijo, celebrando em Faro o início da exploração do seu caminho de ferro.
Finalmente a inauguração!
Luís Santos, na obra Os Acessos a Faro e aos concelhos limítrofes na segunda metade do séc. XIX, que temos vindo a seguir, elucida-nos bem sobre esses dias.
No domingo à noite, a banda do Regimento de Caçadores n.º4 atuou num coreto erguido na Praça da Rainha, junto ao edifício da Santa Casa da Misericórdia.
Na manhã seguinte, 1 de julho, aquando a saída do primeiro comboio com destino ao Barreiro (6h10), foram queimadas várias girândolas de foguetes, atuando na estação quatro filarmónicas: a “Regenerador de Lagoa”, “Alunos de Minerva” de Loulé, “8 de Dezembro de Faro” e a banda do Regimento de Caçadores n.º4.
Pouco depois era colocado à venda um jornal especial A Inauguração (ver imagem), no qual o editor, Jacinto da Cunha Parreira, escrevia: “Começada há vinte e cinco anos, quando muitas outras províncias já se achavam dotadas de idêntico benefício, a nossa linha férrea é, no atual momento histórico, uma realidade. Só no último quartel deste grande século nos é dado ver, enfim, abreviada a distância que nos separa do resto do país e, não raro, do resto do mundo”.
Às 9h00 foi oferecido, na Câmara Municipal, um bodo a cem pobres, na presença do presidente e vereação.
Quando, às 17h00, partiu de Faro o segundo comboio, este para Beja, foi grande a multidão que se juntou em torno da gare. Por volta das 18h00, quando chegou o primeiro comboio oriundo da capital, houve mais um momento de júbilo. Nessa ocasião, as bandas tocaram o hino nacional, enquanto no ar estalejavam muitos foguetes.
Após o anoitecer, a cidade mostrou todo o seu ar prazenteiro. Às 21h00, uma ruidosa “marche aux flambeaux” percorreu as principais ruas de Faro. Meia hora depois, começaram as iluminações em edifícios particulares, a que se associaram também os públicos.
O Arco da Vila apresentava um efeito surpreendente. Guarnecido de verdura na véspera, no frontão achava-se inscrita a data – 1, 7º, 89 – emoldurada por uma coroa de buxo com fitas azuis e brancas, depois milhares de lumes de cores diversas abrilhantavam o edifício, do fecho da sineira até abaixo.
As principais linhas arquitetónicas e vários outros acessórios estavam artisticamente delineados a luz branca. Por sua vez, as cornijas, janelas, portas e pedestais encontravam-se delineados a luz vermelha, azul, verde e alaranjada. Trinta balões venezianos, simulando lustres, pendiam do fecho do arco. O efeito era grandioso, diziam os jornais da época.
Os frontispícios do hospital, da igreja da Santa Casa da Misericórdia, do Mercado da Verdura e da Casa da Dízima achavam-se também iluminados. As principais ruas da Baixa estavam decoradas. A D. Francisco Gomes tinha duas filas de postes pintados de azul pálido, distando três metros uns dos outros, os quais, nos topos, tinham desfraldadas flâmulas com as cores nacionais e diversos escudetes.
À entrada, do lado da praça, erguiam-se duas grandes colunas cobertas com balões venezianos. Os postes estavam ligados, no sentido transversal da rua, “por arcos de balões de vistosas cores, disposição esta que produzia um efeito de uma deslumbrante abóbada de luz”.
Também a Rua da Sapataria se encontrava iluminada e decorada por balões venezianos e postes embandeirados. No extremo sul, erguiam-se três arcos, apresentando o do centro o retrato do Rei D. Carlos I, encimado por uma coroa e ladeado por considerável número de luzes. A Rua Direita apresentava igualmente soberbo efeito.
A partir das 22h00, o Montepio Farense abriu o seu bazar-quermesse, instalado na Praça da Rainha, num elegante pavilhão composto por três corpos ligados entre si por duas pequenas galerias, todo iluminado a balões venezianos.
Há 125 anos com o caminho de ferro, como agora com a EN125
Milhares de pessoas deslocaram-se de todo o Algarve para assistir ao acontecimento e não foi a desconsideração da família real e do governo que impediram os algarvios de organizar e participar em tão alegres e ruidosas festas: “Houve momentos em que não se pôde transitar pela Praça da Rainha e pelas ruas Direita, do Rego e da Sapataria, tal era a imensa mole de povo ali aglomerada”.
No dia seguinte, repetiram-se os concertos pelas bandas, bem como as iluminações, abrindo de novo o bazar.
Festejos que se repetiram por outras localidades, como noticiou a Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, na edição de 11 de julho de 1889: “O comboio ascendente foi recebido em todas as estações do trajeto com enorme concurso de povo; a estação de S. Bartolomeu de Messines estava embandeirada e a concorrência era ali extraordinária. Na estação de Sabóia/Monchique, já na serra, era admirável o efeito de mais de cem homens com archotes, que se estendiam entre as agulhas”.
Dois comboios diretos, um em cada sentido e outros dois com transbordo em Beja, estavam à disposição dos algarvios, para, num percurso de 13h20, atingirem a capital do reino. Um novo capítulo na história do Algarve estava agora aberto.
Volvidos 125 anos não faltam nos nossos dias tristes analogias à história do caminho de ferro do Algarve, seja nas obras suspensas da EN125, ou em acontecimentos onde o menosprezo a que o Algarve e os algarvios são votados pelo poder central é evidente.
Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de História Local e Regional