O poder sempre teve uma relação muito tensa com os artistas, com os quais mantém um conflito latente.
Nas sociedades autoritárias e ao longo da História, esse conflito já se traduziu em atos de violência exercidos sobre os artistas, tais como a censura, a prisão ou, até, a morte.
Nas sociedades democráticas, o poder prefere optar por comportamentos de outra natureza, que passam pela tentativa de domesticar os artistas, de os comprar, de os impedir de ter lugar no espaço público, de os levar a tribunal, etc.
Não sendo ética e filosoficamente comparáveis nem os meios nem os resultados do tipo de ações a que me referi, todas elas têm em comum o mal-estar que os artistas provocam no poder pelo simples facto de exercerem a sua liberdade através do que exprimem e do modo como o fazem.
E, para os agentes do poder, esse exercício da liberdade é simplesmente assustador, porque os confronta com o facto de o discurso dos artistas, os temas que eles elegem para se exprimirem artisticamente, a linguagem que usam, etc., escaparem ao controlo que querem ter sobre as sociedades e os indivíduos: recordo, a título meramente exemplificativo, o papel que a canção «Não Posso Mais», de Pedro Abrunhosa, acabou por desempenhar, em 1995, no denominado «Buzinão da Ponte».
Não se pense, contudo, que só os agentes do poder têm essa relação difícil com os artistas: também a sociedade a tem. É que, não havendo nada que os artistas excluam das suas possibilidades de expressão, pode acontecer usarem símbolos de todos os tipos para denunciarem situações, provocando a ira daqueles que mais se sentem visados por esses usos.
Relembro alguns casos ocorridos em Portugal: a reação feroz do então presidente da Câmara de Lisboa, Nuno Krus Abecasis, à possibilidade de exibição do filme de Jean-Luc Godard, Je Vous Salue Marie, em 1985; o processo em tribunal contra João Grosso, em 1986, por ter cantado o hino nacional em estilo rock num programa televisivo; a interrupção brusca da emissão das «Entrevistas Históricas» de Herman José pela direção da RTP, em 1987, por causa de uma caricatura da Rainha Santa Isabel; a reação também muito feroz de «grupos de católicos» e da hierarquia da Igreja a um cartoon de António, publicado no jornal Expresso em março de 2010, em que ele representava o papa João Paulo II com um preservativo no nariz.
Uma pesquisa rápida na internet permite a identificação de dezenas de casos semelhantes em Portugal – e de milhares por esse mundo fora.
Frequentemente, como já disse, os artistas pagam a sua opção pelo supremo exercício da liberdade com a morte, como aconteceu com Federico García Lorca, John Lennon e Victor Jara em contextos históricos diferentes.
É significativo que, nestes casos, quase sempre o resultado, a longo prazo, das proibições ou perseguições aos criadores tenha sido a celebrização pela positiva das suas obras ou atitudes que foram objeto de perseguição.
«Ultraje», «ofensa», «imoralidade», «atentado ao pudor», etc., são expressões usadas pelos agentes do poder ou por grupos de cidadãos para caracterizar atos de artistas que ousam exprimir-se publicamente fora das normas (morais, religiosas, linguísticas, políticas, sexuais, sociais, etc.) ou contra elas, como aconteceu com A Origem do Mundo, do pintor Gustave Courbet.
No entanto, desde que não atentem contra a vida ou a integridade física de outros, esses atos encontram a sua legitimidade no interior da função que a Arte cumpre na sociedade e só nesse âmbito (estético e filosófico) podem e devem ser julgadas.
Por isso, a defesa da liberdade de expressão dos artistas é a defesa da nossa própria liberdade enquanto cidadãos. Importa perguntar: que preço estamos dispostos a pagar por ela?
Autor: António Branco é o reitor da Universidade do Algarve