Quando era miúdo, adorava brincar com Lego.
E o mesmo se deve passar com imensa gente, de diversas gerações, já que é um brinquedo que anda por aí desde os anos 30 do século passado. Por esta, e muitas outras razões, esta é uma das marcas genericamente mais queridas junto da opinião pública.
Os brinquedos nunca tiveram que ser politicamente correctos. No entanto, os tempos mudaram. E, tal como as peças Lego passaram da madeira para o plástico, também os brinquedos passaram a ter que levar em linha de conta as implicações políticas e sociais a eles atribuídas.
Prova recente desse facto é a polémica que envolve a Lego, a empresa petrolífera Shell e a Greenpeace.
A Lego e a Shell têm, desde a década de 60 do Século XX, uma parceria promocional, que tem originado inúmeros brinquedos e outros produtos, ostentando a bem conhecida concha de vieira da petrolífera anglo-holandesa, normalmente vendidos nas estações de serviço.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)
Em Julho deste ano, com a apresentação, por parte da Shell, da intenção de avançar com perfurações petrolíferas no Ártico, a Greenpeace desencadeou um esforço de pressão social e mediática sobre um dos mais “simpáticos” parceiros daquela empresa, que muitos apontam como uma forma de branqueamento social da imagem poluidora da Shell (que conta com alguns acidentes graves no seu historial, e uma proibição, em 2013, por parte do Governo dos Estados Unidos da América, de operar justamente no Ártico, no Alasca). Para tal criou um vídeo, lançou uma petição online, e desafiou as pessoas que se identificassem com a reivindicação a enviar um e-mail ao presidente da Lego, apelando ao término da parceria.
Assim, em vez de tentar acções directas contra a empresa (como tentou contra a russa Gazprom, o que valeu a detenção de 30 activistas, sob uma acusão de pirataria, mais tarde retirada), adoptou uma estratégia de sensibilização e mobilização da comunidade internacional, muito graças ao recurso às redes sociais e aos canais de vídeo online, onde o poder de lobbying e controlo mediático das grandes corporações é menos eficaz. Paralelamente, responsabilizou a Lego pelas suas afirmações de responsabilidade social e ambiental e compromisso com a procura de um desenvolvimento mais sustentável.
E o que é facto é que parece ter resultado, já que a Lego veio anunciar que não renovará o contrato que mantém com a Shell, sem que no entanto estabeleça relação entre esse facto e a campanha da Greenpeace (o vídeo, intitulado “Everything is NOT awesome”, atingiu mais de 6 milhões de visualizações a nível mundial).
Não deixa, ainda assim, de ser curioso que o principal vilão do recente filme Lego seja o presidente de uma corporação petrolífera, a Octan, que supostamente é a contraparte ficcional da bem real Shell, no universo destes brinquedos…
Perante este passo da Lego, abandonando a parceira com a Shell, as opiniões naturalmente dividem-se.
Alguns louvam a Greenpeace, por, na sua defesa do Ártico, ter conseguido infligir um golpe de certa forma significativo na imagem da Shell.
Outros compadecem-se da Shell, vendo-a como uma espécie de organização filantrópica, e acusando a Greenpeace de tentar bloquear o progresso da indústria extractiva, que procura mais petróleo para alimentar o nosso modelo de consumo.
Alguns olham para a Lego como agente do mal, pois o plástico de que são feitas as pequenas peças, o ABS, requer, por quilograma produzido, que sejam utilizados dois quilogramas de petróleo, entre matéria-prima e energia. A isto temos ainda que somar, pelo menos, os custos energéticos de moldagem, embalagem e transporte. Pensando que, de acordo contas feitas por autênticos investigadores dedicados ao assunto (que aqui vendo ao mesmo preço que comprei), um quilograma de ABS gera cerca de 650 peças de Lego médio, surge a ameaça de uma pesada pegada ecológica para esta empresa.
Sem pretender entrar no debate de anjos e demónios, acerca de quem são os bons e os maus nesta história (se é que os há), parece importante reter o poder do envolvimento da comunidade. Porque foi o poder da opinião pública e do papel, enquanto consumidores, de todos/as aqueles/as que participaram na campanha, o que condicionou a opção da terminar a parceria.
Assim de repente, isto soa particularmente interessante para regiões como o Algarve, que têm que enfrentar opções complicadas de desenvolvimento, nomeadamente ao nível da exploração de hidrocarbonetos na costa.
Provavelmente seria tempo (porque de forma minimamente atempada) de promover um envolvimento organizado, sério e informado da população, com uma discussão alargada acerca dos vários riscos e benefícios que este tema acarreta.
Caso contrário, dá-se rédea solta aos mitos urbanos, que fazem com que cada navio de maior porte que se aviste na linha de horizonte seja o anti-Cristo petrolífero a aportar à costa do reino dos Algarves.
É que a informação está para a opinião pública como as peças de Lego para uma construção.
Consoante a configuração, assim o resultado pode ser uma estrutura sólida, ou uma ruína à espera de colapsar…