Suspeito por vezes que os alertas, em tom alarmista e quase histérico, sobre perigos ‘modernos’ que o uso da Internet acarreta têm muito mais a ver com as questões de poder, cujos fautores estavam habituados a dominar a informação e o conhecimento e a servi-los à sua medida e dos seus interesses aos restantes cidadãos, sem concorrência.
A Rede (Net) democratizou, de forma quase impensável há 10 anos atrás, o acesso à informação, ainda para mais quando manejada de forma interativa e de acordo com as preferências de cada um.
A narrativa do poder engasgou-se, deixou de fluir sem percalços, a opinião pública extravasa, com frequência, a opinião publicada. Com apelos das redes sociais 200 mil saem à rua em Lisboa, um milhão em Madrid, 6 mil em Faro. Os políticos são confrontados com declarações suas contraditórias, que consideravam ter desaparecido no tempo, os trabalhadores da McDonald’s convocam uma greve mundial.
De facto, os perigos que hoje se apontam à socialização na Rede (Net), em especial para os mais novos, não diferem assim tanto dos que a história do Capuchinho Vermelho já antecipava:
Cuidado com estranhos, por mais simpáticos que se mostrem, por mais bonita que seja a sua aparência. Mais palavra, menos palavra, o mesmo que os relatórios das entidades policiais definem como predadores que se infiltram nas redes de socialização.
Afinal, um comportamento social recorrente pelo que as comunidades sempre tiveram necessidade de ensinar os mais novos a socializar, tendo em conta esse tipo de atitudes desviantes. Ao tempo em que a informação, aqui definida como experiência, era transmitida de boca para orelha, as histórias e fábulas eram um veículo privilegiado.
A verdadeira questão parece residir no tom e no veículo que as comunidades e famílias contemporâneas terão de acionar para continuar a transmitir essa mensagem quase tão velha como o mundo: viver é uma aventura que comporta perigos e crescer implica correr riscos.
Como diz o aforismo, mordedura de cão cura-se com o pelo do mesmo cão, pelo que o uso eficiente da Rede (Net) pode ser a melhor forma de defesa, uma ferramenta hoje tão imprescindível para o conhecimento, a socialização, a atividade cívica, política e o entretenimento como o foram antes os livros, as canetas, os cadernos, as histórias, as reuniões, os panfletos, os bailes e as cartas de amor.
Para se ter ideia da dimensão e abrangência da Rede (Net) eis meu calendário pessoal desta tarde. Durante a hora do almoço, consultei dois jornais angolanos. Através de um programa de conversa (chat) comentei os assuntos que hoje eram notícia num outro continente, com dois amigos, um deles estava algures no Médio Oriente a fazer um curso de formação numa plataforma petrolífera e a outro deslocara-se à África do Sul, em férias. Conversamos como se estivéssemos à mesa do café, sobre a realidade do país onde todos nascemos.
Ainda sobrou tempo para fazer uma pesquisa sobre a deflação e o impacto que o contrário da inflação acarreta nas economias. Antes, foi possível consultar o El Pais, o Guardian e o Times (pelos menos as manchetes) e dar uma vista de olhos pelas edições online dos jornais regionais do Algarve.
Antes de tudo isto, enquanto o mail descarrega, se fazem as ligações e se introduzem as brasileiras senhas, as inglesas passwords, ou as portuguesas palavras-chave, ouvi os Sinais.
Sons e palavras que o meu amigo Fernando Alves, jornalista da TSF, espalha na telefonia, via podcasting, a técnica de distribuição de conteúdos áudio através da Internet, que me deixa construir uma programação à medida, pessoal, mas muito transmissível, para partilhar com quem quiser e ouvir quando bem me apetecer.
Mais tarde, talvez partilhe um post no Facebook, ou ligue a câmara acoplada à máquina e fale com o amor mais que perfeito, ao vivo e a cores, mas sem custos da chamada. Mas essas, já são contas de outro rosário.
Pode-se viver sem Rede (Net)? Poder, pode-se, mas iria ser tudo muito mais cinzento e os horizontes muito mais limitados. E a quem interessa que a informação volte ao tempo das histórias da avozinha?