À primeira vista, é uma proposta irrecusável, pelo montante de investimento anunciado, pelos postos de trabalho que promete gerar e por prever a produção de (muita) energia limpa.
Mas, se o projeto da empresa «Solara4» para instalação de um parque fotovoltaico com quase 600 hectares em Alcoutim «fizer tábua rasa de tudo o que já existe», nomeadamente as infraestruturas e agentes económicos ligados ao Turismo da Natureza, não valerá a pena.
O Estudo de Impacte Ambiental deste projeto esteve em Consulta Pública até final da passada semana, o que permitiu que todos os interessados pudessem ficar a conhecer qual a intenção dos investidores. E, quando se fala em todos os interessados, inclui-se a Câmara de Alcoutim, a quem este projeto nunca foi oficialmente apresentado, apesar de a sua execução estar dependente de uma alteração do PDM.
O presidente da autarquia alcouteneja Osvaldo Gonçalves foi um dos participantes numa sessão informal que, na semana passada, juntou autarcas, empresários e membros de associações regionais, em Vaqueiros, uma localidade do concelho de Alcoutim que poderá ficar «isolada», caso o projeto avance, tal como está previsto.
E não é única localidade do interior que está em risco, assegura João Ministro, responsável pela empresa de Turismo Responsável ProActiveTur, que opera muito no interior da região, nomeadamente na Via Algarviana, que poderá ver um dos seus troços afetado pelo projeto.
Este parque fotovoltaico, a que está associada a construção de uma nova linha elétrica, ocupará cerca de metade do espaço de uma propriedade com mais de 1300 hectares. Desta forma, não será apenas Vaqueiros a ser afetada, mas também as freguesias vizinhas de Martim Longo (Alcoutim) e Cachopo (Tavira). E o impacto virá, acima de tudo, da necessidade de destruir um troço da Via Algarviana que passa nesta propriedade.
Em Martim Longo, já existe uma central fotovoltaica, a da Enercoutim, projeto que não está ligado ao da «Solara4».
Apesar de o Resumo Não Técnico do «Solara4», cujo EIA esteve em consulta pública, referir a criação de um novo traçado para a Via Algarviana (sem especificar onde ou com que características), há sérias dúvidas dos vários setores representados na reunião quanto ao futuro desta infraestrutura turística.
Mesmo Osvaldo Gonçalves, que até terá uma forte palavra a dizer em todo este processo, confessa que foi um jornalista que primeiro o confrontou com a possibilidade deste projeto ser instalado em Alcoutim. «Telefonaram-me a perguntar o que é que eu achava de um investimento de 200 milhões, que criará 600 postos de trabalho. Eu disse que, caso isso fosse verdade, o concelho ganharia o Euromilhões», contou.
Logo após este contacto, que aconteceu no final de 2014, informou-se sobre qual era a intenção de investimento de que o jornal falava, na altura a ser alvo de um processo de EIA, que acabou por ser chumbado. «Disse aos promotores que não tinha sido leal a forma como tinham feito as coisas. Eles pediram desculpa e vieram cá apresentar o projeto, mas durante um almoço», descreveu o edil alcoutenejo.
Os promotores voltaram agora a submeter uma proposta, já com algumas correções. Nesta versão, é dito que o projeto irá criar centenas de postos de trabalho, mais precisamente 300 postos temporários, na fase de instalação do projeto, que demorará menos de um ano. Na fase de exploração, de 30 anos, serão criados até 35 postos de trabalho.
O projeto da «Solara4» prevê a instalação de painéis solares fotovoltaicos, que ocuparão quase 600 hectares de terreno, que se sucederão num campo compacto. Isto obrigará à destruição não só da Via Algarviana, mas também de trilhos rurais, e afetará a atividade cinegética do concelho, situações que inquietam a Câmara de Alcoutim.
«O que mais nos preocupa é a Via Algarviana. Este projeto não poderá avançar sem as devidas contrapartidas, que garantam que esta infraestrutura não se perde. Para o interior, o investimento é importante. Mas não me obriguem a dar para um peditório onde tenha de escolher entre a Via Algarviana e um qualquer projeto», ilustrou Osvaldo Gonçalves. As contrapartidas, acrescentou, serão negociadas no âmbito do processo «de licenciamento final».
Para uma empresa como a ProActiveTur, que trabalha muito com turistas de todo o mundo que querem vir caminhar na Via Algarviana, não basta mudar o traçado, há que garantir que este não atravesse zonas ladeadas por painéis fotovoltaicos ou que tenham sido descaraterizadas. «Já tive de anular um traçado em Lagos, numa zona onde foram construídas torres eólicas. As pessoas queixavam-se, pois não queriam caminhar num estradão», revelou João Ministro.
Outra questão que salienta é a dos mapas do traçado, que terão de ser reformulados e novamente impressos, já com as alterações que venham a ser operadas, com os custos que isso acarreta.
Associações e empresários com muitas dúvidas
Da parte das associações e empresários, chega a garantia de que nada têm contra um investimento desta natureza, desde que seja feito com bom senso e não destrua o que já existe no terreno, a vários níveis. E, avisam, levantam-se questões de ordem sócio-económica e ambiental que não devem ser menosprezadas.
A posição mais sustentada foi apresentada pelo empresário Carlos Ludovico que, apesar de hoje em dia ser o proprietário de um turismo rural na aldeia de Vaqueiros, tem formação em engenharia e lidou, durante a sua carreira, com muitos estudos de impacto ambiental. Na sua opinião, o Estudo Não-Técnico é «um exercício académico», onde as questões são abordadas apenas de forma teórica, mas que não têm aplicação na prática.
A reflexão de Carlos Ludovico sobre o projeto deu, de resto, para encher dez páginas. O empresário entregou este documento, no âmbito do processo de discussão pública, mas também o enviou a diversas entidades, além de o ter disponibilizado online, para todos os que o quiserem consultar.
Na reunião, focou apenas alguns dos aspetos que considerou mais importantes, que estão ligados à sustentabilidade do projeto. Para Carlos Ludovico, mais preocupante do que ter este projeto a funcionar em pleno, é a perspetiva de as obras começarem e ficarem a meio ou, pior, a instalação dos painéis estar já em estado avançado ou mesmo concluída e o projeto ser abandonado. Em qualquer um dos casos, os impactos negativos não seriam contrabalançados pelos aspetos positivos do projeto.
A possibilidade deste projeto ser inviável não é baixa, na opinião de Carlos Ludovico. Desde logo porque prevê uma ocupação intensiva de um terreno com muitos acidentes geográficos, o que significa que parte dos painéis ficarão em encostas orientadas a Norte, onde a exposição solar é muito menor. «Neste tipo de projeto, o normal é só serem usadas as encostas voltadas a Sul. A maioria dos que existem até são em planícies ou planaltos, para melhorar a exposição solar», ilustrou.
Outra questão que levantou, no que toca à sustentabilidade, é a da capacidade de investimento dos promotores e, igualmente importante, de reposição da situação original (ou pelo menos desmontagem das infraestruturas), quando passarem os 30 anos de exploração.
A dúvida está ligada ao facto de a empresa promotora do projeto ter um capital social de 25 mil euros e ser constituída «por duas pessoas em nome individual e uma empresa do Porto, cujo capital social é, igualmente, 25 mil euros». A sua sede «é uma sala num prédio de uma rua do Porto e não têm site». «Caso haja problemas, consegue-se que uma empresa com capital social de 25 mil euros compense os danos causados? Não me parece», disse.
Esta situação não é, ainda assim, rara, neste tipo de projetos. Muitas vezes, os promotores do projeto são apenas uma primeira linha, sendo que os investidores são angariados numa fase mais avançada, quando houver garantias de que há as licenças necessárias para este ir para a frente.
Almargem dividida entre a energia limpa e os impactos no território
Para o representante da associação ambientalista Almargem, presente na reunião, este projeto é uma autêntica dor de cabeça. Se, por um lado, a potência de 200 megawatts de energia limpa, seis vezes mais do que o parque existente na Amareleja, é uma boa notícia, a forma de o conseguir não está de acordo com aquilo que defendem.
«Estamos um pouco divididos. Nós defendemos a energia solar, mas com esta dimensão é um exagero», resumiu João Santos, da Almargem, que também esteve presente na reunião. A associação ambientalista algarvia entregou, entretanto, um parecer contra o avanço do projeto, tal como está, uma vez que, consideram, os seus promotores «podiam conseguir os mesmos resultados, de forma mais sustentável».
As questões ambientais estão ligadas, por um lado, à destruição de centenas de hectares de área florestal, dos quais cerca de 50 de montado de sobro e azinheiras, espécies protegidas. O projeto prevê medidas compensatórias pela destruição desta última mancha florestal, mas não fala na reposição dos cerca de 266 hectares de floresta mista, com pinheiro e outras espécies, como sobreiros e azinheiras, que também serão deitadas abaixo.
Também terá um forte impacto no coberto vegetal, vulgo mato. Neste campo, há uma proposta de ocupação do terreno com rosmaninho, que será mais tarde usado para produção de óleos essenciais, plano que os intervenientes na reunião acreditam que apenas esteja no Resumo Não-Técnico «para inglês ver». Isto porque é admitido que, caso o plano não resulte, esta cultura «será abandonada».
Já Alice Pisco, representante da Glocal/Faro, lembra «os pequenos negócios que existem nesta área, ligados ao setor cinegético e à Via Algarviana». «Quais as perdas económicas que este projeto vai causar, nos que já cá estão? Se der para o torto, então, isto tornar-se-á um deserto», considerou.
«Não se pode fazer tábua rasa de tudo o que já existe. Este Resumo Não-Técnico nem uma folha A4 dedica às questões sócio-económicas», acusou Alice Pisco.