Quem não sabe dançar, diz que a sala está torta…
No entanto, é certo e sabido que as variáveis desta equação popular variam, dentro do seu equilíbrio de forças. Ou seja, nem a sala é sempre perfeitamente regular, nem o dançarino é sempre assim tão matraquilho.
A recente notícia da revisão da Reserva Ecológica Nacional no concelho de Alcoutim suscita alguma reflexão acerca dessa distribuição.
De acordo com notícias vindas a público, o presidente da respectiva Câmara Municipal congratulou-se pela redução desta figura de ordenamento territorial para uma cifra abaixo dos 10% do seu território (ainda assim acima dos 5% pretendidos), quando antes cobria cerca de 50%, alegando que agora serão criadas, com maior facilidade, mais oportunidades de investimento.
Este será, portanto, um caso de bom dançarino em sala anteriormente torta, que se viu impedido de cativar investimento para o seu concelho, e que agora vê aberto o caminho para uma reposição, rápida e segura, da verdade das coisas.
Fica por saber que tipo de investimento será agora atraído, e que antes era obstaculizado pela “verdura”, para melhor compreensão de qual o conceito de desenvolvimento sonhado pelo edil. E, por outro lado, quais teriam sido os alegados interesses entretanto alegadamente esfriados. E se estes não teriam sido atraídos, em primeira instância, pelas condições actuais do território alcoutenejo.
Note-se que considero que ser autarca não é tarefa fácil, e a gestão territorial em Portugal é uma dança de muito difícil execução. Mas há coisas que não há dinheiro que pague.
A figura da REN, e isto muitas vezes não se diz, salvaguarda a estrutura biofísica necessária para que a utilização da paisagem se processe sem que ocorra a degradação das condições de que dependem a estabilidade e fertilidade das regiões. Basicamente, assegura uma estrutura vascular da paisagem, garantindo o seu funcionamento elementar e a continuidade dos seus ciclos fundamentais.
Perturbar este sistema, para além de constituir um factor de instabilidade e degradação ambiental, representa uma ameaça real à integridade de bens e, fundamentalmente, de pessoas. Daí ser de interesse público, imediato, concreto e de âmbito nacional.
Vai um exemplo? Em Albufeira, ao ocuparem-se progressivamente linhas de água e suas margens (desrespeitando áreas nucleares da REN), criaram-se zonas de elevadíssimo risco, com as consequências infelizmente conhecidas. Só isto devia ser suficiente para que todos os autarcas , de Norte a Sul, andassem com a REN em entusiásticas palminhas.
Por outro lado, pode e deve ser exigida uma REN bem delimitada, o que muitas vezes não acontece, por diversas razões, nem todas inocentes. E que pode e deve ser exigida uma gestão da REN a nível central mais pró-activa. Daí que a revisão da REN do concelho de Alcoutim só pecasse por tardia, tal como acontece noutros concelhos.
Mas toda e qualquer revisão deve ser um processo criterioso e tecnicamente fundamentado e não uma mera negociação de percentagens. Pessoal e tecnicamente, não acredito que, em Alcoutim, com os declives que apresenta e a densa rede hidrográfica que possui (entre muitos outros factores determinantes), a REN se fique pela área anunciada.
De qualquer forma, denegrir a REN e culpá-la pela ausência de investimento é enganador. A REN (tal como a Rede Natura 2000 ou áreas de Parque Natural) é um recurso que, ao contrário de outros, não basta ficar sentado a olhar para ele e esperar que dê dividendos.
É exigente, obriga a criar massa crítica e capacidade técnica para interpretar e manusear esta ferramenta de ordenamento, com meios, recursos e autonomia para o fazer coerentemente, potenciando as oportunidades que encerra – através de investidores que, ao contrário do tradicional pato-bravo, gostam de trabalhar projectos de continuidade, e não meramente imediatistas – e permitindo contributos significativos em processos de correcções materiais ou de revisão, por exemplo.
É óbvio que tudo isto constitui um ónus adicional para concelhos como Alcoutim ou outros que desempenham importantes funções ambientais na estrutura da região em que se integram. Por isso mesmo deveria existir um mecanismo de compensação orçamental, que os diferenciasse positivamente, valorizando a sua aptidão para funções de protecção.
Mas aí, o principal “adversário” dos autarcas (e das populações) não é a REN, nem a gestão territorial, nem a conservação da Natureza, mas sim o actual modelo de financiamento das autarquias (indexando os orçamentos à edificação), que se presta a todo o tipo de vilanias e impede que cada concelho assuma os seus valores intrínsecos como motores de desenvolvimento.
Mais, praticamente retira toda a capacidade das autarquias de gerarem investimento ou riqueza reprodutiva, na medida em que estas se tornam meros órgãos expedidores de licenças e cobradores de taxas, e não os agentes de desenvolvimento e dinamização económica que podem ser. Estranhamente, não é comum ver autarcas a baterem-se por alterações a este nível, e apenas eles poderão explicar o porquê.
Depois desta abertura da Caixa de Pandora, se a moda pega – e pegará certamente, ou não estivesse a maioria dos Planos Directores Municipais em revisão, e, já se sabe, ou há moral ou comem todos – não faltarão Nureyevs autárquicos a bater à porta das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, pedindo para que lhes seja endireitada a sala.
O problema é quando, por esse País fora, e mesmo após muito se aplanarem as salas, não há forma dos dançarinos brilharem…
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)