Em Outubro de 2011, altura em que começava a surgir um burburinho acerca de potenciais explorações de hidrocarbonetos ao largo da costa do Algarve, tive oportunidade de publicar neste espaço um artigo intitulado “Há hidrocarboneto na costa”. Nessas linhas, que quem tiver interesse pode revisitar no arquivo online, basicamente achava a coisa bastante disparatada.
Desde então, parece-me que a informação disponível não evoluiu por aí além, ou pelo menos não para os olhos dos comuns dos mortais. Pelo menos em termos de projectos, estudos, coisas escritas, palpáveis, e que fiquem registadas para a posteridade, já que as palavras ditas são demasiado volúveis e efémeras… e por isso mesmo não tenho grande coisa a acrescentar.
No entanto, nestes últimos tempos, a coisa ganhou novas proporções sociais e as consciências agitam-se muito mais do que então relativamente ao tema. O que é excelente, na medida em que é um sinal de vida cívico, ainda que na tradicional perspectiva de “não no meu quintal”. De caminho, promove um muito salutar debate e troca de ideias.
Fico, ainda assim, algo abismado com a ideia que parece transparecer desta onda de mobilização, de que o único problema que a exploração de hidrocarbonetos acarreta para o Algarve, é a perturbação do maná turístico através das hipotéticas plataformas, semeadas ao longo do horizonte meridional.
Ponto prévio: chamem-me lírico, mas sou daqueles que acha que o Algarve pode ser ainda mais do que um destino turístico, e que o povo algarvio pode aspirar a ser mais do que camareiro ou jardineiro (não obstante o tremendo valor de tais ocupações, identificando-me mesmo com a segunda) daqueles que, em boa hora, decidem visitar este recorte de Paraíso.
Vai daí, sou também daqueles que acha o turismo importantíssimo, mas não o Alfa e o Ómega de toda a existência a Sul do Alentejo. Por isso mesmo, não me parece que seja o potencial perigo para o turismo o calcanhar de Aquiles da história dos hidrocarbonetos.
Até porque vejo muitas outras aves agoirentas a sobrevoar o turismo do Algarve.
Uma delas, que faz da galinha dos ovos de ouro bicheza autofágica, é a repetição, até à exaustão, do mesmo modelo, e promessas de salvação eterna para o emprego da região.
Agora só vai mudando a localização, cada vez mais para o interior, talvez pela falta de espaço no litoral ou pelo fastio que vem de mais do mesmo. Ou alguém vê diferenças entre o projecto de Vale do Freixo, e tantos outros empreendimentos eco-friendly, enjoy nature, unique location e relax em monte por esse Algarve fora? Não prima pela imaginação, conceda-se.
Tal como a petizada já acha que o frango nasce em embalagens nas prateleiras de hipermercado, qualquer dia acha que a Natureza são canteiros de arruamentos. Modernices…
No fim, fora da silly season, Algarve nas notícias nacionais só pela taxa de desemprego (porque o modelo perfeito hiberna) ou por algum crime, insólito ou calamidade que se abata sobre nós.
Traz isto à baila outra chaga: o desordenamento do território, que leva a que, quando o astro-rei nos falha, andemos bastante atrapalhados, porque pouco foi pensado, e muito tende para o amontoado. Advém também daí a fraca competitividade global da região. Contas de outro rosário.
No que toca ao que possa vir das entranhas da Terra, o risco ambiental, puro e duro, com toda a ameaça que encerra para a vida no Algarve, é que me parece ser a guilhotina sobre as nossas cabeças.
Pode-se discutir os milhares de empregos e milhões para o PIB do turismo versus a gorjeta que as empresas exploradoras estão dispostas a deixar, mas o direito a um ambiente minimamente saudável no litoral algarvio, devia ser argumento preponderante.
E atenção, porque esse ambiente, para além dos peixinhos, e das avezinhas, e das algas, e de tudo o resto, inclui um bicho também ele muito importante, que somos nós.
Não que o Algarve esteja hoje descansado, no que toca a risco de derrames. Em boa verdade, os mais de 200 quilómetros de albas praias, arribas e falésias algarvias são banhadas por uma ameaça real e já antiga.
Mas, longe da vista, longe do coração, e vai daí, pouca gente se preocupa com as centenas de navios que atravessam o Esquema de Separação de Tráfego Marítimo do Cabo de São Vicente, a escassas milhas da costa, petroleiros e outros transportadores de cargas perigosas incluídos.
Haverá nos portos algarvios meios dotados de sistemas de combate à poluição do mar por hidrocarbonetos com capacidade de resposta para uma ocorrência de larga escala, ou será necessário aguardar por uma embarcação talvez do Porto de Sines, que demorará preciosas horas a chegar a águas algarvias? Chamem-me picuinhas, mas parece-me que, no fim, ficamos tisnados de qualquer maneira.
Veio entretanto o Governo, que desfaz e revoga em abundância noutros sectores, aliviar-nos do fardo da discussão, e acabar com a conversa, dizendo que há contratos, e que são para cumprir, de nada adiantando a expressão da indignação colectiva. Pelos vistos será aqui que se traça a sua linha irrevogável, e a negro.
Para lá dela, só nos resta esperar que não haja, de facto, hidrocarboneto na costa, evitando assim que fiquemos apeguinhados num patameiro bem escuro.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)