A história de Portugal enquanto país esclavagista e ator de primeiro plano no comércio de escravos não é muitas vezes abordada e, quando o é, raramente se aprofunda o assunto.
Na peça «Os Filhos do Fogo de Deus», que tem a sua estreia absoluta amanhã, sexta-feira, às 18h00, na Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, em Tavira, não se usam “paninhos quentes” na hora de falar de escravatura.
O ator e músico algarvio Mário Spencer e o ator e contador de histórias brasileiro Thomas Bakk são os protagonistas desta peça de teatro, que junta as facetas de sessão de contos, de lição de história, de espetáculo musical e, claro, de expressão dramática. A direção artística e o roteiro são responsabilidade de Tela Leão, da associação Partilha Alternativa, e a «música incidental» é de Victor Gama.
Em palco, estarão dois homens, um que nasceu num país que foi o destino de escravos provenientes de África durante séculos, e outro que nasceu na Guiné Bissau, um dos países de onde esses homens, mulheres e crianças eram levados, para sofrer uma vida de horrores e trabalho forçado.
Mais, Mário Spencer traz consigo o legado desse período da história, já que o seu nome de família se refere ao dono de um antepassado seu, que foi escravo.
A ligação de Mário Spencer, que, como Thomas Bakk, vai à cena como ele próprio, a uma realidade violenta do passado dos países lusófonos seria o suficiente para dar força ao texto, escrito a partir de documentos históricos e poemas.
Mas «Os Filhos do Fogo de Deus» é muito mais que isso. O talento dos dois atores faz desta uma peça pujante e que arrasta quem assiste numa viagem a bordo de navios negreiros, rumo a um Brasil colonial onde os escravos eram mercadoria barata, durante uma época em que os ocidentais se sentiam no direito pleno de escravizar outros povos. Há também relatos na primeira pessoa de escravos de então (e não só), cuja crueza é capaz de causar um arrepio na espinha.
Esta convicção de que os mais poderosos podiam subjugar os mais fracos, tratando-os como mercadoria, ainda fazia escola muito depois de a escravatura ter sido abolida oficialmente. Daí que a peça seja lançada com um texto de Fernando Pessoa, onde é feita a apologia (ironicamente?) do direito do homem branco a escravizar os demais, nomeadamente os africanos.
Também Álvaro de Campos empresta a sua poesia à peça. O sentimento é colocado por Thomas Bakk e Mário Spencer.
Mais do que lembrar um período negro da história de Portugal, a peça pretende chamar a atenção para o problema do esclavagismo, que continua bem atual. Nos dias que correm, há muitas pessoas que continuam a ser escravizadas e forçadas a trabalhar. E a realidade nem sequer é distante, pois há casos em Portugal e por toda a Europa.
«A ideia aqui é mostrar o que aconteceu. Sei que pode ser um tema polémico, mas o objetivo não é apontar o dedo. Queremos é evitar que os mesmos erros se cometam nos dias de hoje. Porque o nosso trabalho valeria pouco se não tivesse aplicação nos dias de hoje», explicou Mário Spencer.
«É importante falar disto, porque a culpa não foi só dos Europeus. É certo que eram eles que usavam os escravos, mas houve muitos reinos africanos que entraram neste processo por uma questão de dinheiro e poder», reforçou.
A ideia deste projeto nasce, de resto, da tomada de consciência de Tela Leão sobre quão pouco sabia sobre a história de Portugal enquanto país esclavagista, ao mesmo tempo que caiu por terra a ideia «que os portugueses até eram bonzinhos», no que ao tratamento dos escravos diz respeito, que aprendeu na escola, no Brasil.
«Em 1991, fiz a tradução do trabalho de um investigador americano Robert Eduard Conrad, que fez uma pesquisa sobre este tema recorrendo apenas a documentação da época, relativa ao Brasil», contou.
Na altura, Tela Leão tinha acabado de se mudar do Brasil para Portugal (radicou-se em Tavira em 2007) e o trabalho que teve podia ter sido em vão, já que o livro nunca foi publicado, por falta de interesse de editoras brasileiras e portuguesas. Ainda assim, guardou para si o fruto do seu trabalho, a que agora dá uso.
«Eu percebi o pouco que eu sabia, quando comecei a traduzir os documentos. Principalmente quando traduzi aquele texto terrível da revolta a bordo de um navio negreiro e a absoluta violência que ele revela [da parte da tripulação, castigando os revoltosos]. E eu tinha sempre aprendido que a escravatura no Brasil tinha sido uma coisa suave, que os portugueses eram muito bonzinhos», contou.
A realidade foi, ainda assim, bem diferente. Até porque, ao contrário do que acontecia, por exemplo, nos Estados Unidos da América, os escravos, no Brasil, eram uma mercadoria muito barata, como tal «não eram tratados com muito cuidado». «No fundo, ficava mais em conta comprar um novo escravo, do que cuidar dos que já tinham para que vivessem muito tempo e se reproduzissem», ilustrou.
Para conseguir levar esta peça à cena, a Partilha Alternativa conta com o apoio da Direção Regional de Cultura e da Câmara de Tavira. Este era, de resto, um projeto antigo de Tela Leão, que só com o apoio destas duas entidades teve condições para se tornar realidade. Assim, haverá «uma pré-estreia nas escolas de Tavira», também amanhã.
Depois da estreia em Tavira, há já mais duas apresentações garantidas: a primeira, será no Museu de Loulé, a 2 de Dezembro, no Dia Internacional para Abolição da Escravatura, e a segunda na Semana dos Descobrimentos, em Abril de 2017, no Mercado de Escravos de Lagos.
No caso da apresentação de amanhã, na Biblioteca de Tavira, está inserida na programação do evento Festa de Anos de Álvaro de Campos, uma das iniciativas do programa «365 Algarve».
Vejas as fotos do ensaio da peça Os filhos do Fogo de Deus: