Ao cruzar a porta da Livraria Simões, depressa se torna evidente a profunda paixão que o alfarrabista de Faro tem pelos seus livros. No fundo, são a sua família, que conhece bem e de quem cuida com notório carinho.
Dois dias depois de ver milhares de livros serem levados da sua antiga loja, na Rua do Alportel, da qual tinha sido despejado «de surpresa» em 2015, Carlos Simões não esconde alguma amargura pela forma como desapareceu boa parte de um espólio que acumulou ao longo de mais de 40 anos, no que apelidou, em conversa com o Sul Informação e com um sorriso triste no rosto, como «um assassinato livreiro».
Nas últimas semanas, a notícia de que havia milhares de livros para oferecer a quem lhes desse uma casa, na antiga loja do senhor Simões, gerou grande entusiasmo – como se notou no passado sábado, em que a fila dava a volta ao quarteirão -, mas também muitos lamentos por o alfarrabista de Faro, uma figura da cidade, perder o trabalho de uma vida.
Carlos Simões não se mostra muito sensibilizado pela onda de apoio, até porque continua bem ativo, enquanto alfarrabista, mas nem por isso há muitos a procurar os seus serviços. Ainda assim, há clientes fiéis e outros que passam das palavras à ação.
«Esta manhã [segunda, dia 6 de Fevereiro], quando cheguei aqui à loja, tinha um envelope fechado com 15 euros, de alguém que foi buscar livros à antiga loja e que quis compensar-me de alguma forma. Foi uma senhora que foi lá buscar livros, ficou encantada com o que levou e ofereceu-me o dinheiro de forma anónima, sem deixar nome e morada, para eu poder agradecer. Fiquei muito surpreendido», disse.
Este foi apenas um de «pelo menos três casos» em que quem foi buscar livros às antigas instalações da livraria fez questão de compensar monetariamente o homem que angariou e cuidou de todo aquele espólio ao longo de anos. Também houve casos de pessoas que pensavam que a doação de livros de dia 4 de Fevereiro era nas atuais instalações da livraria e que «acabaram por procurar por aí e levar alguns livros».
A doação do que restava de um espólio de centenas de milhares de livros que o alfarrabista de Faro deixou na loja que manteve durante décadas na Rua do Alportel, na sequência da ação de despejo que lhe foi movida pelo proprietário do imóvel, aconteceu no sábado, já depois de a Câmara de Faro ter inventariado tudo o que lá ficou e várias entidades públicas, entre bibliotecas e serviços municipais, terem ficado com a larga maioria das obras.
Depois de ter sido «apanhado de surpresa» pelo aviso de despejo, o que não lhe permitiu «trazer de lá nenhum livro», Carlos Simões doou todo o espólio à Câmara de Faro. Desta forma, foi possível garantir que os livros mais importantes e de maior valor ficassem na posse de instituições públicas, algo que, confessa o alfarrabista, lhe traz «algum conforto».
Quase dois anos depois de ter sido obrigado a sair da Rua do Alportel, o comerciante de 73 anos continua a manter o seu negócio bem vivo, mas noutro local, na Praceta do Rodolfo, perto da Rotunda do Hospital. Foi, de resto, no meio dos seus «200 a 300 mil» “filhos”, os livros que tem para comercializar neste espaço, que Carlos Simões falou com o Sul Informação.
Os tempos, confessa, são bem diferentes do que quando começou. «Hoje, a maioria das pessoas só querem livros dados e de ocasião», lamentou. Mas há ainda aqueles que fazem da leitura um hábito, alguns dos quais são clientes fiéis. «Há ainda alguns leitores e investigadores, que buscam livros específicos e me contactam. Há pessoas que cá vêm regularmente, nomeadamente pessoas que são de outras regiões e que, sobretudo no Verão, aproveitam para vir aqui comprar livros», contou.
Como se percebe, a livraria Simões é bem diferente das outras. Aqui, não há escaparates com best sellers nem artistas da semana. Há livros, serenamente pousados em fiadas de estantes, corredores apertados e um mundo para descobrir, para os que não dispensam a leitura.
Livros de história, muitos deles relativos ao Algarve, publicações técnicas, dicionários, atlas, romances dos mais variados autores, clássicos, edições de luxo e outras de bolso e revistas, tudo é aproveitado pelo alfarrabista, na esperança que um dia alguém entre pela porta à procura daquele livro específico, que Carlos Simões se dedicará a encontrar no seu espólio. Caso não o tenha, tentará encomendar de outros alfarrabistas.
O que não há é garantia de ter o livro na mão, no dia em que se solicita a publicação. O senhor Simões não tem o seu acervo informatizado, pelo que a busca pela obra pedida tem de ser feita com recurso à memória e com um olhar atento às fiadas de livros que se espalham pela pequena loja.
É a olhar para as estantes, em busca deste ou daquele livro, ou a organizar a sua coleção que Carlos Simões passa boa parte das suas tardes. De manhã, mantém o hábito antigo de montar uma banca no largo da Pontinha, na Baixa de Faro, por baixo das arcadas, onde vende livros diretamente e aceita encomendas.
Ao mesmo tempo, vai aumentando o seu espólio, através de «adoções», ou seja, de livros que lhe são dados. Já houve tempos em que comprava livros a peso, mas hoje em dia «já não se justifica», tendo em conta que a procura é bem menor. Todos os livros são analisados pelo alfarrabista, alvo de recuperação, se se justificar, e adicionados às prateleiras, à espera de um novo dono.
Enquanto tiver forças – «acho que ainda tenho muitos bons anos» -, o senhor Simões garante que continuará a ser alfarrabista e a viver entre e para os livros. Os amantes da literatura e dos livros agradecem.
Veja as fotos da Livraria Simões:
Fotos: Hugo Rodrigues | Sul Informação