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Charles Darwin não foi médico, embora tenha sido filho e neto de médicos e tenha mesmo chegado a frequentar o curso de medicina, na Universidade de Edimburgo, Escócia. Não foi médico, mas deixou um legado de grande valor para a medicina atual: os princípios da sua teoria da evolução.

O exemplo da tuberculose

O reaparecimento de doenças que se julgava erradicadas ou controladas, como a tuberculose, está normalmente associado ao aparecimento de estirpes de bactérias resistentes. E como se explica isto? Qual a relação deste fenómeno com a teoria da evolução? Pois bem, explica-se facilmente, desde que se percebe como funciona a evolução, a seleção natural e a competição entre agentes infecciosos e fármacos.

O aparecimento de bactérias resistentes é previsto pela teoria da evolução, pois qualquer população de seres vivos, face a um agente seletivo, e desde que haja variação hereditária e tempo, irá evoluir e adaptar-se.

No caso da tuberculose, o ser vivo é a bactéria Mycobacterium tuberculosis e o agente seletivo é o antibiótico. Se na população de bactérias houver um ou poucos indivíduos com uma mutação que lhes permita sobreviver ao antibiótico e se estes indivíduos se reproduzirem e transmitirem essa mutação à sua descendência, a mutação mantém-se na população e aumenta em frequência.

O resultado é que, de geração em geração, o número de indivíduos resistentes aumenta e o antibiótico perde a eficácia.

Como as bactérias têm um tempo de vida curto e um elevado número de indivíduos por geração, o tempo necessário para que toda a população se torne resistente ao antibiótico pode ser de apenas algumas horas. Um intervalo de tempo muito mais curto do que o necessário ao desenvolvimento e produção de um novo antibiótico!

Então… O que mudou? Porque reapareceu a tuberculose, quando estava praticamente erradicada? O que mudou foi a proporção de indivíduos resistentes, em relação aos não-resistentes.

A tuberculose reapareceu porque a população de bactérias M. tuberculosis evoluiu e adaptou-se ao novo meio ambiente criado com a introdução de determinados antibióticos. Uma nova alteração do meio – por exemplo a introdução de um antibiótico diferente – pode levar à diminuição da tuberculose.

Mas é provável que o processo se repita, e a resistência ao novo antibiótico acabe por se tornar predominante, levando novamente ao “reaparecimento” da doença.

 

O exemplo do cancro

A investigação médica na procura de uma cura para o cancro também beneficia de um enquadramento evolutivo e da aplicação de ferramentas há muito utilizadas em estudos de biologia evolutiva, como por exemplo a reconstrução das relações evolutivas entre células cancerígenas.

Considerando que cada linhagem celular tem a sua própria história evolutiva, sequenciando o ADN de metástases é possível identificar a origem do cancro.

Este procedimento já revelou, por exemplo, que cancros malignos considerados de rápida progressão, como o cancro do pâncreas, têm afinal uma história pré-diagnóstico bastante longa e que, se detetado precocemente, pode ter um tratamento eficaz.

Por outro lado, pode-se aplicar às células cancerígenas o mesmo raciocínio que descrevemos para as bactérias para desenhar novas estratégias no uso da quimioterapia: se os tumores malignos estão a evoluir sob a ação da seleção natural, há competição entre tumores mais e menos malignos; se estes últimos abrandam a expansão dos primeiros, então doses controladas de quimioterapia poderão ajudar a manter a competição e retardar a expansão dos tumores mais agressivos.

 

Darwin nos cursos de medicina

A integração do conhecimento evolutivo na medicina, designado de ‘Medicina Evolutiva’ ou ‘Medicina Darwiniana’, faz com que a medicina se foque nas causas últimas, evolutivas, da doença.

O princípio é o de que a seleção natural terá moldado a evolução de muitas das características humanas, pelo que a doença é encarada como uma reação adaptativa a uma qualquer perturbação – ambiental ou fisiológica – ou um produto secundário de outra resposta adaptativa.

Assim, por exemplo, as doenças metabólicas, como a diabetes tipo II, ou intolerâncias alimentares, como a síndrome da intolerância à lactose, podem ser melhor compreendidas se forem enquadradas num contexto de alteração recente da nossa alimentação e requerimentos energéticos; o início da agricultura e da sedentarização terá cerca de 10 mil anos, um intervalo de tempo curto numa perspetiva evolutiva.

Será a medicina evolutiva a solução para a doença? A perspetiva evolutiva coloca a doença como parte da história do ser humano o que, por sua vez, leva à formulação de novas questões, relativas à perspetiva médica ‘convencional’.

Talvez na procura de respostas a essas questões se encontrarem novas formas de combater as doenças.

 

Dia de Darwin

Como se viu, a importância de Darwin vai muito além dos trabalhos que desenvolveu em vida e que hoje nos ajudam a compreender melhor a origem e diversificação dos seres vivos.

Tem implicações muito valiosas em diferentes áreas fundamentais para a sociedade.

Em jeito de retribuição, um pouco por todo o mundo se organizam eventos comemorativos do seu aniversário, a 12 de Fevereiro, conhecido como Dia de Darwin.

 

*texto adaptado de Vila J, Campos R (2013). Medicina evolutiva. In Campos R (ed.). Um livro sobre evolução. CIBIO, Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos. Porto, Portugal. Pp 111-114. Distribuição gratuita [https://www.dropbox.com/s/t2iw0czeobtid5g/Um%20livro%20sobre%20evolucao.pdf]

 

Autora: Rita Campos
Licenciada e doutorada em Biologia pela Universidade do Porto, é atualmente investigadora de pós-doutoramento no Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO/InBIO).
O objetivo geral da sua investigação é tentar conhecer melhor a biodiversidade através da análise dos padrões da sua variabilidade genética.
Desde 2009 dedica uma parte do seu tempo a projetos de educação não-formal e comunicação de ciência.
Tem particular interesse pelos temas da evolução biológica e biodiversidade e por desenvolver projetos que envolvam a participação ativa do público.
É membro fundadora da Associação Portuguesa de Biologia Evolutiva (APBE) e do seu Núcleo de Educação e Divulgação (NEDE-APBE).
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

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