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Numa altura em que a seca se agrava em Portugal continental, com cerca de 80% do país em seca meteorológica severa e extrema, continuamos a lembrar o relatório do governador civil de Faro, sobre as consequências da longa estiagem de 1875, no Algarve.

Nessa época, depois de um mau ano agrícola em 1874, em que praticamente não choveu, sobreveio um ano ainda mais seco, de tal forma que, em maio de 1875, face a apelos angustiantes da região, o governo foi forçado a agir.

Assim e de forma a avaliar a verdadeira situação da região, foi determinado que o governador civil percorresse todo o distrito, contactando com as autoridades locais e observando in loco, as reais consequências da estiagem.

O relatório, assaz descritivo, que nos permite hoje traçar o retrato social e económico da época, seria publicado no jornal lacobrigense “Gazeta do Algarve”, que continuamos a seguir.

Nesta sequência, após percorrer todo o Barlavento Algarvio, José de Beires visitou Loulé. Ao contrário da maioria dos concelhos vistoriados, o governador foi aqui parco na caraterização geral, limitando-se a classificar Loulé como um concelho “importante”.

Quanto à seca, as freguesias da serra poucos danos registavam, enquanto as do litoral encontravam-se em “miserável estado”, lutando os pequenos lavradores com grandes dificuldades. Percorramos agora, guiados pela sua pena, cada uma das freguesias do concelho.

 

Assim em Salir:
“Sua principal riqueza agrícola consiste em cereaes, de que se espera colheita um pouco inferior á de um anno regular. O arvoredo consta de oliveiras, alfarrobeiras e figueiras, que pouco têem soffrido com a estiagem. Ainda assim a producção será inferior á de uma colheita ordinária, exceptuando as oliveiras, que nenhum fructo apresentam, tendo havido no anno passado boa colheita.
Os serôdios têem melhor aspecto do que nas outras freguezias, mas não chegarão a produzir a quarta parte do anno anterior. As nascentes desapparecem, e falta bastante gado, que tem morrido á falta de pastos.”

Por sua vez, no Ameixial:
“N’esta freguezia ha pouco arvoredo, apenas alguns sobreiros. As searas, sua cultura principal, estão em melhores condições do que as de Salir. A producção não soffre desfalque.”

Curiosa a referência à baixa densidade florestal (sobreiros) na serra do Ameixial, quando a rarefação de árvores é regularmente atribuída às campanhas de trigo do século XX.

 

Já em Alte:
“A maior parte d’esta freguezia está inculta, e os melhores terrenos cultivados pertencem ao morgado de Alte. Abunda em alfarrobeiras, que em geral apresentam producção inferior á de um anno regular. As searas produzirão quando muito a semente, e os serôdios reviveram com as ultimas chuvas, podendo ainda esperar-se alguma colheita.”

Quanto a Querença:
“Terreno montanhoso, sua principal cultura, oliveiras e alfarrobeiras. As primeiras não tem fructo, as segundas pouco promettem. As poucas searas que tem estão perdidas; os serôdios maus, e o gado morre em quantidade por falta de pastos.”

 

A situação era aqui aflitiva, todavia, em Boliqueime era ainda mais dramática:
“Sendo talvez a mais rica freguezia do concelho, é a que apresenta mais deplorável aspecto em todos os ramos da sua agricultura. Soffre todos os effeitos da estiagem como a visinha freguezia de Albufeira, acrescendo que a maior parte dos terrenos pertencem ao morgado do duque de Loulé, e achando-se estes arrendados por preço elevado, ficam os lavradores nas mais tristes condições, por que nem podem satisfazer as rendas, nem tem meios com que possam agricultar no anno próximo futuro. Falta-lhes até a palha para os gados.”

A seca tinha ainda levado muitos homens a partirem para as ceifas no Alentejo, deixando as suas famílias “jazendo no leito da fome”. Note-se que Quarteira só seria elevada a freguesia em 1916, pertencendo grande parte do seu território (morgado do duque de Loulé, hoje Vilamoura) a Boliqueime.

Relativamente a Almancil:
“Quasi nas mesmas condições [Boliqueime] e grande escacez de agua potável”.

Por fim a freguesia de Loulé (só em 1891 seria subdividida em São Clemente e São Sebastião):
“Quanto a searas, nas mesmas condições das outras freguezias. O arvoredo, principal cultura (alfarrobeiras e figueiras) soffrivel.”
A uma serra onde os efeitos da seca eram menores, ainda assim com alguma mortandade de animais pela ausência de pastagens, contrapunha-se o barrocal e litoral, sôfregos de água e de pão.

 

O governador civil vistoriou de seguida o município de Tavira, o que indicia que tenha terminado o périplo por terras louletanas em Salir ou no Ameixial. Tavira não era dos municípios mais afetados pela estiagem, ainda assim a produção do concelho para aquele ano era aproximadamente 1/5 de um ano regular.

Quanto às freguesias, principiou aquele funcionário administrativo por visitar Santo Estêvão:
“A sua cultura principal é de oliveiras e alfarrobeiras. As primeiras nada produzem; no anno passado houve colheita regular. As segundas apresentam alguma producção, mas ruim. Também tem alguns figueiraes, que se acham em geral em mau estado. As amendoeiras pouco produzirão; as vinhas, especialmente as velhas, tiveram poucos lançamentos; os serôdios estão perdidos e as searas produzirão um terço de uma colheita regular. Abunda em pomares de regadio; mas as nascentes vão desapparecendo, e receia-se por isso a perda de muitas arvores.”

É interessante a referência a pomares de regadio e a nascentes em pleno barrocal.

Quanto a Santa Catarina da Fonte do Bispo:
“Tem os peiores terrenos do concelho. A sua cultura principal é de oliveiras e alfarrobeiras, que se acham nas mesmas condições das de Santo Estevão. As searas apresentam melhor aspecto, esperando-se uma producção media de 50 por cento em referencia a um anno regular.”

 

Já em Cachopo:
“É a freguezia que menos soffre. As searas estão regulares. Pouco arvoredo de fructo.”

Seguiu-se a freguesia da Fuzeta, integrada no concelho de Tavira até 1876. Apesar de estar localizada no litoral, não padecia muito com o desastroso ano agrícola:
“Não é das freguezias que mais soffre, não obstante achar-se situada na zona próxima da costa. As vinhas, sua cultura principal, apresentam bastante fructo, as figueiras, com quanto pouco lançadas, tem um aspecto mais sadio do que se observa nos outros figueiraes do litoral. As searas em geral produzirão a semente; e os serôdios ainda se não consideram totalmente perdidos.”

Quanto à Luz:
“Arvoredo é a sua cultura predominante. O seu estado é similhante ao que se observa na Fuzeta. As vinhas estão menos lançadas, e as searas promettem melhor colheita do que na freguezia de Santo Estevão. Tem muitos pomares que já se resentem da secca das nascentes.”
Relativamente à Conceição e a Santiago, encontravam-se em situação semelhante a Santo Estêvão e à Luz, sendo as culturas análogas.

Por fim, em Santa Maria:
“Tem uma parte de serra, cultivada principalmente de cereaes, e a sua producção será de pouco mais de uma semente. A outra parte está nas mesmas condições das outras freguezias.”

Feito o diagnóstico em Tavira, José de Beires deu continuidade à sua jornada agora em Olhão.

(continua)

 

Parte I – As “passinhas do Algarve” na seca de 1875 ou o retrato social e económico da região

Parte II – As “passinhas do Algarve” na seca de 1875 ou o retrato social e económico da região – Lagos, Monchique e Portimão

Parte III –As “passinhas do Algarve” na seca de 1875, ou o retrato social e económico da região – Lagoa, Silves e Albufeira

Nota 1: As imagens utilizadas são meramente ilustrativas. Correspondem a postais ilustrados, da primeira metade do século XX.
Nota 2: Nas citações do jornal «Gazeta do Algarve», optou-se por manter a grafia e da época.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita, engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, colaborador habitual do Sul Informação

 

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