A mãe compreende até o que os filhos não dizem.
(máxima hassídica)
A ligação entre mãe e filho é forte. Dizê-lo é banal, redundante, superando esse vínculo quase todas as relações afetivas ou biológicas.
Publicada há menos de uma semana, uma investigação científica revelou que o ADN dos filhos por vezes invade as células cerebrais das suas mães. Este fenómeno biológico há muito que é conhecido por ocorrer em vários órgãos, no fígado por exemplo, mas nunca havia sido quantificado em células cerebrais.
Os resultados apresentados na revista PloS One (1) apontaram a presença de material genético masculino nos cérebros das respetivas mães. O ADN circulou dos filhos varões para o corpo materno, num fenómeno denominado microquimerismo fetal.
59 cérebros foram autopsiados neste estudo, revelando que 37 das mães (63%) possuíam um gene específico do filho. As mães “contaminadas” com ADN da descendência apresentavam também poucas evidências de doenças neurológicas como o Alzheimer. Para um dos autores deste estudo, William Burlingham, não existe ainda uma explicação para esta correlação entre a presença de ADN do filho e a ausências de alterações neurológicas (2).
Como foi identificado o ADN dos filhos no cérebro das progenitoras?
O método mais prático de identificação do ADN estranho à mãe envolveu localizar o gene DYS14 do cromossoma Y, uma vez que apenas os homens possuem este cromossoma, facilitando assim a descoberta de material genético que não seja da progenitora. Este método não descarta a hipótese de que ADN feminino tenha o mesmo tipo de migração para o cérebro das mães, apenas facilita para já a identificação de ADN de origem masculina.
Microquimerrismo fetal
O microquimerismo fetal é o fenómeno biológico pelo qual há transferência de material genético (ADN) entre dois indivíduos, sendo anteriormente conhecida a transferência entre a mãe e o feto ou mesmo entre irmãos gémeos durante a gestação. Conhecidas igualmente eram as trocas de material genético entre irmãos não gémeos já que existe em circulação, no corpo da mãe, ADN de um irmão mais velho e que, eventualmente, passará para o irmão mais novo.
A longevidade desse ADN estranho no corpo da mãe pode mesmo atingir os 27 anos após a gravidez (3). A difusão de ADN entre indivíduos está associada ao desenvolvimento de algumas doenças auto-imunes como o lúpus eritematoso sistémico ou doenças reumáticas.
Os resultados agora publicados deste tipo de microquimerismo fetal não deixam de ser surpreendentes mas lançam sobretudo muitas questões biológicas, como por exemplo:
Qual o papel do ADN do filho no cérebro da mãe?
Qual a relação entre a presença daquele ADN em diferentes quantidades em zonas distintas do cérebro materno?
Qual a interpretação para a correlação positiva entre a quantidade de ADN filial e a menor probabilidade de a mãe desenvolver Alzheimer?
Para além destas questões biológicas, não deixo de me impressionar também pelo valor emotivo deste fenómeno. À carga afetiva que liga a mãe e o filho acresce agora uma ligação que se estende às células cerebrais, fonte de todas as emoções e pensamentos.
Mãe é mãe. E mais o é com o ADN dos filhos.
REFERÊNCIAS:
(1) Chan WFN, Gurnot C, Montine TJ, Sonnen JA, Guthrie KA, et al. (2012) Male Microchimerism in the Human Female Brain. PLoS ONE 7(9): e45592. doi:10.1371/journal.pone.0045592
http://www.plosone.org/article/info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pone.0045592
(2) http://www.the-scientist.com/?articles.view/articleNo/32678/title/Swapping-DNA-in-the-Womb/
(3) Bianchi DW, Zickwolf GK, Weil GJ, Sylvester S, DeMaria MA (1996) Male fetal progenitor cells persist in maternal blood for as long as 27 years postpartum. Proc Natl Acad Sci U S A 93: 705–708. doi: 10.1073/pnas.93.2.705.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC40117/
IMAGEM: “Petrograd Madonna”, de Kuzma Petrov-Vodkin (1878-1939)
Autor: Luis Azevedo Rodrigues é professor, doutorado em Paleontologia, divulgador de Ciência e coordenador dos Centros de Ciência Viva do Algarve. É ainda autor do blogue Ciência ao Natural