Certamente que não existe na história da história natural um ser (de entre os vivos e os mitológicos) mais confuso do que as sereias.
Todos nós conhecemos as sereias pós-clássicas como o ser da fantasia dos marinheiros, metade mulher e metade peixe, de beleza e voz encantadoras que os atraíam para destinos fatais.
Esta é, na verdade, uma das lendas mais persistentes no tempo, desde a Antiguidade Clássica ao período contemporâneo, e comum a mais culturas humanas, já que existem sereias espalhadas um pouco por todo o mundo.
Ainda hoje muitas pessoas querem acreditar na sua existência e procuram provas ditas científicas em qualquer vestígio de massa de vida marinha arrojada em terra.
Bem menos conhecidos, e com uma distribuição muito mais restrita do que a das sereias, as vacas-marinhas (manatins e dugongos, Ordem Sirenia), grandes mamíferos aquáticos herbívoros, podem estar na origem da famosa lenda.
As três espécies de manatins ainda existentes distinguem-se pela sua presença geográfica e ocupam uma área cada vez mais reduzida devido aos impactos diretos e indiretos de inúmeras atividades humanas: África Ocidental, Índias Ocidentais (Caraíbas) e Amazónia.
Os exploradores e cronistas portugueses começaram a encontrar estes estranhos animais marinhos nas costas africanas do Atlântico a partir de meados do século XV, mas foi Cristóvão Colombo quem primeiro mencionou, em 1493, para as Caraíbas, “três formas femininas”.
Os dugongos, por outro lado, apenas habitam as águas costeiras do Oceano Índico e também foram amplamente descritos pelos navegadores europeus que passaram por aquelas águas.
Talvez inspirados pelo conhecimento da mitologia mediterrânica ou baseados nas obras de humanistas como Damião de Góis, que também descreviam tais seres nas costas europeias, os que observavam e descreviam estes animais misturavam características reais da sua biologia com fragmentos de imaginação ou das suas ideias pré-concebidas.
Assim, os animais tinham cara de besta feia e disforme, mas corpo de mulher, de onde resultavam nomes como o “peixe-mulher” da Guiné, para além do bem conhecido “peixe-boi” que os missionários – como Anchieta, Cardim ou Léry – frequentemente descreviam para o Brasil.
O animal passou a estar inscrito nos anais da história natural pela mão de Carolus Clusius e posteriormente por Ulisse Aldrovandi, ainda que este último mantivesse um espaço privilegiado nos seus tomos para as sereias e outros peixes (ou monstros) com aspeto humano.
Aqui, mais uma vez, apareciam em simultâneo o ser mitológico e o ser real, a bela sereia e o bestial manatim.
Não parece existir outro ser marinho com tantas dúvidas existenciais associadas ou tamanha bipolaridade na sua essência histórica como as sereias e o animal a partir do qual foram criadas.
E as dificuldades em separar um do outro mantiveram-se até hoje, quando alternamos entre momentos em que apenas acreditamos nas verdades cientificamente comprovadas, com episódios de esperança épica de que das profundezas desconhecidas dos oceanos surja uma qualquer novidade que venha a mudar a forma de encarar o mundo natural.
Autora: Cristina Brito
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva
Mais sobre sereias e monstros marinhos na história da história natural em: “The beautiful monster: mermaids” @ the Biodiversity Library Heritage Blog.