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Há cem anos, a história da evolução humana ficou marcada pelo anúncio do que terá sido a maior fraude cometida nesta ciência. Era apresentado o primeiro homem, que não só era europeu como inglês.

Foi a cereja em cima do bolo para os eurocentristas que conseguiram a incrível proeza de fazer prevalecer o homem de Piltdown como o primeiro homem durante 41 anos. Efetivamente, só em 1953 a fraude foi desmascarada: tratava-se de uma mandíbula de orangotango cuidadosamente adaptada para articular num crânio humano moderno.

Os criadores da fraude conseguiram mitigar a sua responsabilidade a ponto de ainda hoje se afirmar que não se sabe exatamente quem estava por detrás daquela montagem bem orquestrada. De qualquer modo há nomes, como o de C. Dawson e A. Woodward, que ficaram irreversivelmente manchados. Piltdown é um marco indubitável da história da paleoantropologia e, talvez, uma das fraudes científicas mais duradouras.

Das várias lições que dela podemos derivar, destacaria a enorme e perigosa influência das tendências nacionalistas e em como é falacioso ver nas alegadas descobertas provas de teorias concebidas sem quaisquer evidências subjacentes. Cria-se e queria-se que o primeiro homem tivesse já um grande cérebro e assim foi. Era essa a ideia dos perpetuadores da fraude: o desenvolvimento cerebral teria antecedido o bipedismo. A aceitação deste falso dogma constituiu uma barreira para a aceitação de fósseis africanos indiscutivelmente cruciais. A criança de Taung, África do Sul, anunciada à comunidade científica por R. Dart em 1925, teve que esperar décadas para ser aceite como o, à época, fóssil mais antigo da humanidade (com mais de 2 milhões de anos).

Dart e o seu Australopithecus africanus, que foi efetivamente o primeiro membro dessa espécie a ser descoberto, tiveram, por causa do homem de Piltdown, que esperar décadas para ser reconhecidos. Foi também a primeira vez que se utilizou a designação de Australopithecus que hoje é um género que inclui várias espécies.

Hoje o menino de Taung, que já era bípede mas com uma pequena capacidade craniana, continua a ter um papel essencial na evolução humana, provando o enorme visionarismo do seu descobridor.

Inversamente, Piltdown e os seus alegados autores são mencionados como um péssimo exemplo do que pode acontecer em ciência. Não se pretende pois comemorar uma efeméride, já que Piltdown é absolutamente desmerecedor (não obstante ter tido direito a um memorial, em 1938,em Inglaterra, um feito lamentável!).

O objetivo desta crónica é avivar a memória relativamente à facilidade com que acontecem fraudes. Cem anos depois, a febre de encontrar “ o primeiro”, seja o 1º homem, seja o 1º homem anatomicamente moderno a chegar à Europa, seja o 1º estúdio de arte, o 1º colchão, mencionando aqui apenas algumas das descobertas que foram consideradas o Top 10 dos achados paleoantropológicos de 2011 pela Smithsonian Institution.

É inegável que haverá maior notoriedade, maior divulgação, se a descoberta for a primeira de qualquer coisa. Valerá por isso a pena, para alguns, correr o risco e anunciar descobertas surpreendentes mesmo numa época em que a aceitação das mesmas passa necessariamente por um crivo científico alegadamente apertado.

A Nature e a Science tendem a funcionar como esses crivos, mas nem sempre estarão completamente isentas de outras influências. Por isso, uma boa dose de ceticismo, q.b., continua a ser fundamental quando são divulgadas as grandes notícias científicas sobre a nossa história natural.

 

Autora: Eugénia Cunha é professora catedrática de Antropologia no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra

Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

 

 

 

 

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