Lagos é uma cidade com cultura, todos o dizem. De todas as formas, foi-se propagando a história (mais ou menos branqueada) de uma cidade dos Descobrimentos. Talvez milhões tenham sido investidos em iniciativas de promoção de uma marca fetiche à qual chamaram Lagos dos Descobrimentos.
Mas Lagos é mais do que isso. Também se proclama cidade de artistas e nela se construiu alguma da História de Arte Portuguesa. Nas últimas décadas do século XX, instalaram-se aí alguns artistas que olharam uma cidade que oferecia algum encanto e onde o potencial humano das pessoas lhes permitia sonhar. Um desses sonhos resultou nas Bienais de Lagos, um certame nascido em 1982 pelas mãos de um conjunto de artistas com a ajuda do exército português, e com certidão de óbito assinada nos anos 90 pela autarquia lacobrigense.
Uma morte que teve como reverso uma nova vida, o Centro Cultural de Lagos. Neste espaço, muitas pessoas têm sonhado e nele, com mais ou menos meios, foi-se conseguindo erguer ideias e processos que, embora nem sempre tenham sido felizes, marcaram momentos ou tempos mais longos. Um espaço que atualmente está sem vida, mantendo as suas portas abertas a fazer de conta que tem uma programação, mas a fragilidade do seu programa quebra-se com o primeiro vento que vier do mar.
O mar, esse, assiste tranquilo a este desmoronar. Sabe que tem sido objeto de sonhos, teorias e de muita criação. Nele se inspiram muitas obras de arte, assim como monstruosos atentados que, em defesa da devolução da cidade ao mar, apresentam orgasmos de arquitetura como o é a atual desfigurada Praça do Infante.
Nos anos 60, aquando da reestruturação da frente ribeirinha, nasceu uma outra praça, que, embora motivada por um enquadramento de Estado Novo que olhava a arte refém de uma história monumental, articulou um espaço com vida e que nos deixou um legado importantíssimo que os tempos mais recentes vieram dilacerar. Sobre este assunto já tive oportunidade de escrever um artigo publicado no Jornal Barlavento (ler aqui), mas vale a pena continuar a reflectir e questionar.
Que plano tem o município de Lagos para a preservação da arte pública na cidade? Fico sem a resposta e uma certeza: os planos por aqui só se fazem quando dá jeito para aprovar intervenções que atentam contra o livre usufruto do espaço público, como o é a transformação castrante na Meia-Praia e a futura intervenção do Porto de Lagos, que intervém num futuro em prol de uma Marina insensível às questões de cultura, com notório interesse imobiliário e pouca vontade de produzir retorno social pelo uso do que a nós pertence.
O espaço público em Lagos, assim como a sua arte, não tem sido considerado, quer pela falta de trato ou por existirem tratados mal feitos, cozinhados nos gabinetes em sistemas verticais que matam qualquer possibilidade de se poder erguer uma sociedade justa e participativa.
Habituamo-nos a ver os nossos objetos artísticos intervencionados alarvemente, com graves lacunas nos cuidados que se deveria ter quando se decide requalificar ou renovar o nosso património.
Recentemente recuperada, a escultura do artista Jorge Vieira junto ao tribunal é um bom exemplo da leviandade com que se resolve reavivar as cores com um esmalte foleiro e sem a minúcia e o rigor na sua aplicação.
Na mesma zona, assiste-se a uma renovação do pavimento na Baixa da cidade, vindo a retirar os espaços verdes decrépitos e a substitui-los por calçada e esplanadas. Nele encontramos uma escultura de João Cutileiro que consta no roteiro de arte pública da cidade e que foi tratada nesta intervenção sem o menor respeito, com mazelas que estão marcadas na sua pele de mármore. É que mover um escultura de pedra não é o mesmo que mover um pedregulho e a Câmara Municipal tem a obrigação de saber disso.
Já a estátua de D. Sebastião situada na Praça Gil Eanes e do mesmo autor, é hoje uma referência na estatuária portuguesa, tendo sido desenvolvida em módulos de pedra que constroem um rei que gerou forte discussão na sociedade de Belas Artes quando, em 1973, foi implementada.
Atualmente com um dos braços a desprender do corpo, a sua manutenção é um imperativo não só para a sua conservação, como para a segurança pública, uma vez que está em risco de cair e levar consigo um dos inúmeros turistas que, de braço dado com a estátua, tiram fotografias. Os dirigentes, esses, há muito que foram avisados, sendo atualmente responsáveis se algum desastre acontecer.
Nada a fazer! Uma posição confortável que está de acordo com a atualidade. O povo inerte, impávido e sereno, assiste a um assalto sem precedentes, enquanto o seu património edificado e imaterial se afunda.
São ventos de uma maleita salgada que poderá ser encontrada em muitas outras cidades, corroendo o património ao abrigo de políticas de governos centrais ignorantes, como o atual, que assinou em carta régia um tratado de aniquilação da cultura, escolhendo para carrasco da sua execução o escritor que agora brinca de fazer política e que pouco saberá do que se passa por esse país fora.
Ai Lagos, ai Portugal!