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Cheias em Albufeira, fenómeno tão antigo quanto a ocupação do vale ribeirinho

Há 65 anos, também se andou de barco na baixa de Albufeira
Há 65 anos, também se andou de barco na baixa de Albufeira

Há muito esquecidas e ignoradas, a magnitude das cheias que assolaram a baixa de Albufeira, em meados do século passado, repetiu-se neste 1 de novembro de 2015. É verdade que, amiúde e nos últimos anos, têm sido noticiadas diversas inundações na cidade, mas as últimas grandes cheias tinham ocorrido ainda nos anos de 1950.

As décadas de 40 e 50 do século XX foram pródigas em inundações no Algarve, as quais adquiriram contornos violentos em Albufeira. Cheias causadas por intensa pluviosidade, que engrossaram a ribeira e invadiram a vila, que cresceu precisamente sobre a ribeira.

Em consequência, as cheias semearam o pânico e o horror, provocando elevados prejuízos materiais e até perdas de vidas humanas.

Nos últimos dias de novembro de 1949, um temporal de grande violência assolou o Algarve, e Albufeira não foi exceção. Preparada para receber a feira franca, a vila foi duramente atingida, conforme noticiou o jornal “O Século”, de 01/12/1949: “Em Albufeira, na noite passada (29/11) e todo o dia de hoje, também choveu torrencialmente. As águas da ribeira sobrepuseram-se aos dois diques e fizeram levantar alguns cascões da canalização das águas para o mar. A parte baixa da vila voltou a ser inundada pela cheia da ribeira, registando-se prejuízos materiais em diversas casas”.

O Diário de Notícias (DN), da mesma data, acrescentava: “Duramente experimentada pelas inundações de 25 de Outubro e 23 de Dezembro de 1948, esta vila está de novo inundada (…). A feira franca, marcada para os dias 29 e 30 do corrente, não chegou a realizar-se, pois a água destruiu algumas barracas e ameaça arrastar para o mar as pistas de automóveis eléctricos e as barracas de cavalinhos. Os feirantes que foram atingidos por elevados prejuízos encontram-se albergados em várias casas, postas à sua disposição. Continua a chover e a população está sobressaltada”.

Na sua edição de 03/12/1949, noticiava ainda o DN que “em Albufeira apareceu abandonada uma embarcação e avistou-se no mar o cadáver dum homem que se supõe ser um dos tripulantes. Durante todo o dia de ontem (1/12), por quatro vezes toda a parte baixa da vila ficou coberta de água. Todos os pavimentos das ruas estão revoltos e estragados”.

Cheias em Albufeira nas décadas de 40 e 50 do século XX
Cheias em Albufeira nas décadas de 40 e 50 do século XX

A cheia de 30 de novembro de 1949 foi uma das primeiras da vila a ser amplamente fotografada, pela mão de Fausto Napier, e da qual existem hoje numerosas fotografias. Todavia, outras inundações ocorreram, como a de 25 de outubro e a 22 de dezembro de 1948 ou ainda a de 15 de janeiro de 1956, de efeitos e consequências mais nefastas, embora não abundem os registos fotográficos.

As águas das chuvas transbordaram um dique alagando ruas, largos e quintais, desmoronando prédios e enchendo de pânico a população de Albufeira”, foi a manchete da notícia, que o jornal “O Século” de 26/10/1948 dedicou às cheias de 25 de outubro de 1948.

O mesmo jornal acrescentava: “Difícil é descrever os momentos aflitivos que se viveram aqui, quando a chuva, como se fora um verdadeiro dilúvio, fez com que as águas inundassem a parte baixa da vila, tudo ameaçando assustadoramente. Transbordou o dique e alagaram-se ruas, largos, quintas, e casas de comércio e de habitação. Alguns edifícios que ameaçavam ruína desmoronaram-se, outros ficaram com as paredes fendidas. Tudo se registou inesperadamente, apesar das chuvas torrenciais que caíram durante a noite fazerem prever inundações. O pânico foi terrível, pois a cheia atingiu dois metros, e como, muita gente corresse perigo, logo se solicitaram os serviços dos bombeiros de Faro, Loulé e Portimão. Igualmente se utilizaram barcos para socorrer pessoas em perigo e haveres de muita gente”.

O semanário farense “Correio do Sul” estimou os prejuízos em 2000 contos, sendo de 500 contos só no Grémio da Lavoura pela perda de sementes, alfaias, trigo, cimento e adubos. O restante era repartido pelos comerciantes, Central Elétrica (atual Galeria Samora Barros), e por proprietários de edifícios que ruíram.

Não eram decorridos dois meses, a 23/12/1948 o DN faz notícia de primeira página: “Temporal no Algarve – Na Vila de Albufeira a água das chuvas atingiu cerca de 7 metros de altura”. “A parte baixa daquela vila ficou completamente bloqueada pelas águas. É tal a violência do temporal na costa que muitas embarcações têm sido arrastadas para o mar, e estão-se a partir na ressaca contra as rochas da praia. Estabelecimentos comerciais onde a água não tinha entrado em inundações anteriores tiveram agora prejuízos quase totais. Em muitos sítios a água atingiu os primeiros andares, cobrindo completamente as árvores. Da frota pesqueira há mais de 40 barcos destruídos”.

Cheias em Albufeira nas décadas de 40 e 50 do século XX
Cheias em Albufeira nas décadas de 40 e 50 do século XX

A inundação principiou cerca das 8 horas da manhã do dia 22 e prolongou-se por cerca de 20 horas: “A pressão da torrente a certa altura rebentou o dique e destruiu em enorme extensão, a rampa que serve de varadouro aos barcos de pesca. Nalguns locais, como por exemplo no largo Duarte Pacheco, as águas atingiram o nível de sete metros! Na avenida da Ribeira, a água escavou o solo numa profundidade de 4 a 5 metros, pondo a descoberto o antigo leito da ribeira, que àquela artéria deu o nome. E com a destruição da rampa do varadouro, as águas do mar invadiram a vila e juntaram a sua fúria às devastações da inundação. Paredes e alicerces de vários edifícios de construção mais ligeira, minados pelo ímpeto das águas, estão agora a desmoronar-se, ficando assim dezenas de famílias sem-abrigo. (…) Em suma Albufeira viveu horas de indescritível horror, de uma angústia de que é impossível dar, sequer uma pálida ideia”. (DN de 24/12/1948).

Sete anos depois, e após uns dias mais chuvosos, as cheias em Albufeira foram de novo notícia nos jornais: “Temporal no país – Em Albufeira a água da cheia atingiu três metros de altura! Os prejuízos são grandes e uma mulher desaparece na enxurrada” (DN de 16/01/1956).

Em suma tudo se repetia! “No largo Eng. Duarte Pacheco, transformado num pequeno lago, e onde a água subiu a três metros de altura (…). Alfarrobeiras centenárias foram arrancadas cerce e vieram ribeira abaixo em direção ao enorme esgoto ali recentemente mandado construir para evitar a repetição das inundações de 1948, o qual apesar dos cálculos acabou por não ser suficientemente grande para comportar o volume das águas. (…) Os prejuízos sofridos pelas dezenas de estabelecimentos inundados e os verificados em inúmeras residências são de alguns milhares de contos, pois houve vários comerciantes com danos de centenas de contos só à sua parte”.

Em termos de vidas humanas, faleceu, arrastada pelas águas, uma senhora de 48 anos de idade. Outros habitantes foram salvos pelos bombeiros de todo o Algarve que ali acorreram, após fortes apelos lançados pela Emissora Nacional, e por populares, pois houve pessoas que “tiveram de agarrar-se às árvores como aconteceu no jardim público e ali se conservaram, lutando para não serem arrastadas pela água e por ela submersas, despendendo toda a sua energia e esforço até que foram em seu auxílio”. (DN 16/01/1956)

Albufeira, nos anos 40 e 50 do século XX – a ocupação do vale e do leito de cheia ainda apenas despontava

Na realidade, a ribeira foi sendo canalizada em conduta ao longo dos últimos 100 anos, e simultaneamente, foram sendo construídas mais habitações/prédios nas “margens” e sobre o seu leito. Ainda em 2009 foi intervencionado mais um troço, uma obra polémica entre o Parque de Campismo e o Centro de Saúde.

Sendo as cheias um fenómeno cíclico e normal no clima mediterrânico, e a função dos cursos de água tão-somente transportá-la, seja ela muita ou pouca, a ocorrência de cheias fluviais em Albufeira são, nas circunstâncias atuais, uma verdadeira “bomba relógio”, de consequências imprevisíveis, que urge corrigir.

Quanto a responsáveis, somente o Homem o é, afinal ocupou, usou e abusou de uma área que não era sua, mas da Ribeira de Albufeira.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de História Local e Regional

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