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Celebrar o património, em especial o do território do Baixo Alentejo, juntando a música e alguns dos seus melhores intérpretes mundiais, o património histórico e arquitetónico e ainda a biodiversidade e conservação da natureza. Só falta juntar a tudo isto dois ingredientes: um profundo envolvimento com as pessoas e as instituições que estão no território e, por isso, um grande calor humano.

É de tudo isto – e muito mais que nem cabe em palavras – que se faz o Festival Terras sem Sombra. Foi isso mesmo que se viu, ouviu e viveu no passado fim de semana, por terras de Odemira.

Em termos de música, porque esse é o ingrediente que dá mote ao festival, o concerto de sábado à noite, 4 de Março, na Igreja de São Salvador, em Odemira, foi palco da estreia do recém-fundado ensemble «Polyphonos», que revisitou música portuguesa de inspiração mariana dos séculos XVI-XVIII, alguma da autoria de compositores nascidos no Baixo Alentejo.

Com a igreja cheia, as jovens mas já experientes vozes masculinas e femininas, acompanhadas pelo órgão e pelo violoncelo barroco, ecoaram em momentos de puro encanto. A soprano Raquel Alão, que tem raízes familiares em Odemira e é um dos elementos principais deste ensemble que nasceu de um convite da organização do festival, não escondia a sua satisfação: «fiquei profundamente satisfeita com o concerto, com a forma como decorreu, com o trabalho que fizemos».

Mas, ainda antes do concerto, o programa do Terras sem Sombra já tinha começado na tarde de sábado, com uma visita comentada pelo património e pela história de Odemira. Teve como um dos guias o historiador António Martins Quaresma, «provavelmente o maior conhecedor da história de Odemira», como salientou José António Falcão, diretor geral do festival, historiador de arte e ele próprio o segundo guia do passeio pedestre.

E se pensa que Odemira tem pouco para conhecer, engana-se! Começa logo pela circunstância de, no bem tratado centro histórico da vila, haver três igrejas importantes, quase lado a lado, sendo duas delas sede de paróquias: Santa Maria, São Salvador e Misericórdia. E cada uma delas tem os seus segredos e as suas histórias para contar.

 

Santa Maria é o que resta de um antigo convento franciscano, construído no século XV, hoje desaparecido, por ter sido «praticamente demolido, servindo como pedreira viva e repositório de materiais de construção» desde a extinção das ordens religiosas no século XIX.

Na igreja, restam desses tempos de convento franciscano as feias talhas escuras, castanhas, com poucos dourados, para mais «maltratadas pelas obras feitas nos anos 90». Segundo António Martins Quaresma, os frades franciscanos, que faziam voto de pobreza, estavam «privados de ter uma talha sumptuosa, profusamente dourada». Daí esta talha escura, simples.

Do antigo convento, resta também, no quintal da casa ao lado, um poço, que estará no local onde antes existiria a cisterna do hoje desaparecido claustro, e uma porta de uma antiga cela. Tudo isso foi visitado pelo grupo, autorizado a entrar em zona privada pela dona da casa, grande amiga do festival.

O investigador António Quaresma, excelente contador de histórias, recordou os Condes de Odemira, uma «casa senhorial de grande poder em Portugal», que surgiu no século XV e foi «muito próxima do rei, até D. Sebastião». Era a principal financiadora do Convento de S. Francisco e da sua ação.

Mas a linhagem acabou por se extinguir nos finais do século XVII e os bens dos Condes de Odemira foram para a Casa de Cadaval. José António Falcão disse que a «última condessa morreu relativamente jovem e sem descendência e foi um drama, porque era uma das principais casas senhoriais do país».

A extinção da família teve consequências na vila, já que foi «um drama enorme também para os frades, que deixaram de ter o seu apoio», até financeiro. E não demorou muito até que o convento fosse perdendo frades e acabasse por fechar. Neste caso, salientou José António Falcão, «foi uma fatalidade que não tenha sido transformado em edifício público», como aconteceu com a maioria dos conventos por esse país fora. Decadente, fechado, acabou por ser utilizado como pedreira para outras construções da vila.

 

Ali ao lado, fica a Igreja de São Salvador, hoje igreja paroquial, que, como tantas vezes acontece, guarda vestígios de várias épocas e até da época contemporânea, nomeadamente a escultura da árvore da vida e o sacrário, da autoria de João Charters de Almeida. Mas o altar mor, quase despido, é dominado por uma pintura a óleo, de grande formato, representando Cristo Salvador do Mundo, da autoria de Pedro Alexandrino, nome maior da pintura portuguesa do século XVIII.

A escassas dezenas de metros, do outro lado do largo, fica a antiga Igreja da Misericórdia, classificada como Imóvel de Interesse Público, e que, de fora, logo chama a atenção pela sua arquitetura.

José António Falcão classifica-a como «o edifício mais espetacular e interessante do ponto de vista da história da arte», salientando que se trata de um exemplo da «arquitetura mais experimental do Maneirismo português, que chega a um meio pequeno e afastado» como era Odemira, sendo «provavelmente» obra de «um dos muitos arquitetos formados em Coimbra».

Ainda antes de entrar, o historiador de arte chama a atenção para as urnas que decoram o portal, simbolizando a eternidade, dizendo que se trata de «peças de grande erudição que surpreendem num meio em que predominaria a arquitetura regional».

Mas é lá dentro que os olhos dos visitantes – que incluíam jornalistas, autarcas, técnicos da Câmara Municipal, músicos, amigos do festival e muitos odemirenses – se abrem de espanto. A igreja, hoje despojada por muitas décadas de outros usos e maus tratos, tem um teto com uma forma quase elíptica e as paredes a revelarem vestígios de exuberantes pinturas murais. Um dia, espera-se, tudo isso será alvo de restauro, como revelou a vereadora Deolinda Seno Luís.

Ao longo das altas paredes caiadas, veem-se quadrados de pintura mural resgatados a anos e anos de esquecimento. São os vestígios do trabalho dos formandos de um curso de Auxiliares de Conservação e Restauro, promovido pela Direção Regional de Cultura do Alentejo, e em que a conservadora Deolinda Tavares, técnica daquele organismo, bem como outros quatro especialistas foram os formadores. Um trabalho que um dia terá continuidade, através de um projeto que junta a Câmara de Odemira, a Santa Casa da Misericórdia e ainda a Direção Regional de Cultura.

Enquanto isso não avança, resta observar esta estranha igreja, mesmo assim impressionante. José António Falcão explica o formato do edifício e do teto, salientando que se trata de mais uma manifestação do Maneirismo, com a «justaposição de duas figuras geométricas – retângulo e elipse – que simbolizam o encontro do céu e da terra». O teto é assente em quatro trompas, que, além de terem uma «função acústica» muito importante, são também «elementos da transição entre céu e terra», numa «espécie de teologia aplicada às artes plásticas».

«Aqui temos uma pérola conservada em estado notável para poder ainda ser recuperada», comentou a conservadora Deolinda Tavares.

«Este arquiteto que fez a Igreja da Misericórdia era alguém que sabia muito bem o que estava a fazer» e os frescos das paredes «não são obra de um curioso, mas de alguém que dominava muito bem a técnica», acrescentou José António Falcão.

 

O passeio cultural à descoberta dos segredos de Odemira continuou pelas ruas, até ao Largo da República, onde ficam os Paços do Concelho, subindo depois para a zona mais antiga da localidade, o cerro onde se situou o castelo, hoje desaparecido. Nesse alto, com vista privilegiada para o Mira que corre lá em baixo, lamacento e ao sabor das marés, a Câmara construiu há alguns anos a Biblioteca Municipal.

António Martins Quaresma aproveita para recordar que «Odemira era uma espécie de placa giratória de distribuição de mercadorias que aqui chegavam ou que daqui partiam, nomeadamente cereais, vinho, carvão vegetal, mais tarde minério de ferro, cortiça». O rio era então uma verdadeira autoestrada, que facilitava o acesso a este hinterland. Odemira, apesar de a uns bons 30 quilómetros do mar, era um verdadeiro porto marítimo, porque a influência das marés ainda hoje se faz sentir até à vila.

E foi aqui que tanto Quaresma como o arqueólogo Jorge Vilhena, outro dos guias do passeio, lembraram o facto de o Mira ter sido conhecido, até ao século XIX, como «rio de Odemira». E chamaram a atenção para a particularidade de, ao ser assim, chamado, o curso fluvial não ter nome, ou antes, de ser chamado duas vezes rio. Confuso? É que Ode vem do árabe uadi, que quer dizer rio. E Mira é uma palavra com origem ainda mais antiga, que também quer dizer rio. Ou seja: rio de Odemira quer dizer rio de rio-rio…

Desceu-se então até junto deste rio duplamente rio para ir visitar o que resta, junto à ponte metálica construída em 1891, e bem escondida dos olhares, da antiga Ermida de Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Odemira.

As cheias do Mira já não invadem a ermida, da qual apenas resta o arco do nártex, devido à construção, a montante, da Barragem de Santa Clara, que regularizou as fúrias fluviais. José António Falcão recordou que, segundo a lenda, as cheias entravam na igreja, mas ficavam-se pelo altar, nunca submergindo a imagem de Nossa Senhora da Piedade. Uma lenda que pode «levar-nos a suposições quanto à antiguidade deste espaço sagrado». Nossa Senhora da Piedade, recorda o historiador de arte, «está muito associada aos rios, tem a ver com uma antiga divindade que também perdia o seu filho, que depois renascia com as águas».

José António Falcão recorda que Odemira se situa em pleno Caminho de Santiago e que ali bem perto da antiga ermida ficava a albergaria da barca, para apoio aos peregrinos. «Temos aqui, na ermida de Nossa Senhora da Piedade, um santuário mariano, que faz todo o sentido, porque os peregrinos, em cada terra, visitavam os santuários». Esta Santa Maria de Odemira seria, aliás, cantada em verso pelo rei Afonso X, de Leão e Castela, avô do nosso D. Dinis, que relata um milagre.

 

Ali perto, à beira do rio, em cada uma das margens, erguem-se umas curiosas construções brancas, que parecem capelinhas. António Martins Quaresma diz que se trata dos «pontos de amarração da barca», que permitia passar de um lado ao outro do rio, vencendo os seus perigos.

A barca passava gratuitamente os passageiros, que apenas tinham de rezar, como pagamento simbólico, um Pai Nosso e uma Avé Maria pela alma da senhora que instituíra, não se sabe quando, este sistema de transporte, deixando um «legado pio» para que o seu rendimento permitisse pagar ao barqueiro e manter a barca.

Porque a nova ponte abafou a ermida, foi preciso erguer outra igreja num sítio mais alto, onde as águas do Mira não chegassem. E lá está, no monte sobranceiro, a atual igreja, erguida no início do século XX, não sem que houvesse alguma resistência popular.

É daqui que, todos os anos, a 8 de Setembro, sai a procissão em honra de Nossa Senhora da Piedade. E foi com a subida a esta capela que terminou uma intensa visita de três horas ao rico, mas ainda tão desconhecido, património de Odemira.

E porque não é apenas de cultura, história e música que se faz este Festival Terras sem Sombra, no domingo, 5 de Março, houve ainda a atividade de valorização da biodiversidade, desta vez tendo como tema o rio Mira.

Ao todo eram cerca de quatro dezenas de pessoas. Como só havia três barcos, que podiam transportar metade das pessoas, dividiu-se o grupo em dois: enquanto metade partiu de barco do cais de Vila Nova de Milfontes e subiu o rio até Casa Branca, a outra metade foi de autocarro até este local ribeirinho, para depois descer o curso de água.

O tempo estava muito cinzento, por vezes caía uma chuvinha miudinha, mas ninguém desistiu da aventura, tal era a vontade de conhecer este troço do Mira e os seus segredos. O mais difícil foi mesmo descer dos barcos e subir para eles no degradado cais de Casa Branca. Só a ajuda preciosa de António Luís Falcão, produtor de ostras no estuário do Mira, conseguiu que toda a gente desembarcasse e embarcasse em segurança.

 

Pelo caminho, ao longo de uma hora de navegação rio abaixo (ou acima) e apesar da chuvinha, foi possível observar as pradarias marinhas, tão importantes para a criação de peixes e para alimentar as muitas aves que por ali andavam, mas que hoje são um dos habitats mais ameaçados a nível mundial. Ninguém conseguiu avistar uma lontra, mas ficou a certeza de que a espécie vive aqui, em ambiente estuarino.

E assim terminou mais um fim de semana de Festival Terras sem Sombra, intenso, como todos. O próximo está marcado 25 e 26 de Março, em Santiago do Cacém.

No sábado, 25, depois da visita ao centro histórico (15h00), às 21h30 a Igreja de Santiago Maior recebe o concerto «Perpétuo Movimento: em torno d’A Arte da Fuga», com os nova-iorquinos Brentano String Quartet.

Como recordou o diretor artístico Juan Ángel Vela na apresentação em Serpa, «este quarteto está a fazer uma digressão por Londres, Paris, Madrid e outras grandes capitais europeias…e vem a Santiago do Cacém», que não é propriamente uma grande metrópole.

Mas o premiadíssimo quarteto de Nova Iorque achou piada ao convite que lhe foi feito pelo pequeno, mas diferente, Festival Terras sem Sombra e aceitou estar no Alentejo, para apresentar um «programa de alta exigência», à volta dos estudos de violino. «Eles viram, pela internet, as fotografias da igreja matriz de Santiago Maior e mostraram-se muito agradados com o monumento». E por isso será em Santiago do Cacém que o quarteto residente da mítica Yale School of Music irá terminar a sua digressão europeia.

No dia seguinte, domingo, 26 de Março, o passeio ambiental será pela paisagem cultural em torno do Convento do Loreto. Aqui, onde existe uma «ocupação ancestral com um sobreiral notável», os participantes irão plantar sobreiros, mas, mais do que isso, serão instituídos patronos dessas árvores, «para que elas vinguem».

De entrada livre em todas as suas atividades, o Festival Terras sem Sombra é organizado pela Pedra Angular (Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja) e pelo Departamento do Património desta Diocese e prolonga-se até  2 de Julho, seguindo para Ferreira do Alentejo, Santiago do Cacém, Castro Verde, Serpa, Sines e Beja, sob o título Do Espiritual na Arte Identidades e Práticas Musicais na Europa dos Séculos XVI-XX.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues|Sul Informação

 

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