Com o título “Algarve” foi publicada há cerca de 100 anos uma pequena brochura, com 64 páginas, dedicada inteiramente à região.
Editada em Lisboa, com o número 12, pela Livraria Profissional “Os Livros do Povo – Noções de Tudo”, faz jus ao subtítulo, constituindo uma verdadeira radiografia do Algarve de então.
Desde a geologia, história, clima, flora, fauna, principais povoações, vestuário, superstições, indústria, viação, até ao turismo, tudo foi enumerado e descrito no pequeno livrinho.
Da autoria do tenente Carlos de Sousa Leal, e sob a direção de Gastão Correia Mendes, era comercializado a 5 centavos, ou 50 réis, como também anunciava.
Apesar de não se encontrar datado, foi seguramente publicado entre 1915 e 1922 (depois do falecimento do monografista Ataíde Oliveira e antes da inauguração do caminho de ferro de Portimão a Lagos).
Façamos então uma viagem no tempo, ao Algarve dos nossos bisavôs.
A região, tal como hoje, tinha 16 concelhos e 67 freguesias, todavia apenas quatro cidades (Silves, Faro, Tavira e Lagos) e doze vilas.
Pelos censos de 1911, a população cifrava-se em 272 861 habitantes (hoje são 451 005), dos quais apenas 23 768 homens e 2 501 mulheres sabiam ler, ou seja, 63% da população era analfabeta (5,4% em 2011).
A emigração era reduzida, fruto da abundância de trabalho e do baixo custo da alimentação. O distrito era muito seguro, sendo a ordem pública mantida apenas por algumas dezenas de polícias e cerca de 150 militares da Guarda Republicana.
Animais ferozes também não os havia, “excepcionalmente se vê na serra um lobo ou outro, que raro desce ao litoral”, escreviam os autores.
Em termos económicos, destacava-se a agricultura e a pesca, bem como os seus derivados, com notoriedade ainda para a cortiça, tecidos de algodão, telha, louça, tijolos, calçado, marcenaria, construção de carros, artefactos de palma, esparto, linho e queijo, “enceiramento e encaixotamento de figo”.
A indústria de artefactos de palma era generalizada, sendo “raro o algarvio que não sabe fazer a «empreita»”. Produzia-se muito vinho e azeite, contudo, “trigo produz pouco e milho muito mais”.
Nas acessibilidades, a primazia pertencia ao caminho de ferro, a que se seguia o transporte marítimo, mais económico e grande concorrente do primeiro, todavia mais incerto.
Mas a viagem de comboio também não era fácil, já que, além de demorada (tinha quatro entroncamentos), era muito incómoda.
De entre os portos, destacava-se o de Vila Real, nunca assoreado devido às contínuas dragagens realizadas pela Companhia das Minas de São Domingos, para garantir o escoamento de minério, bem como pela exportação de conservas e outros produtos regionais.
Os de Vila Nova de Portimão (só seria cidade em 1924), Faro e Tavira estavam muito assoreados, pelo “abandono a que têm sido votados e em que provavelmente continuarão”.
Na foz dos rios, também se carregavam barcos, ou ainda nas baías de Lagos e de Albufeira.
A rede de estradas, ampla e com piso razoável no litoral e barrocal, não permitia a circulação de automóveis através da serra, de e para o Alentejo, e consequentemente para o resto do país. Na verdade, estes quase não existiam, quanto muito havia carroças. Frequentes eram os burros: “não há camponez que não disponha de um burrico, auxiliar, modesto e paciente, que transporta a água para casa, a mulher ou os filhos às feiras, festas e compras nos povoados, e de parelha com uma vaca, lavra e debulha”.
Descrito como verboso, alegre e comunicativo, o algarvio era também trabalhador, sóbrio, ordeiro e amigo de constituir família, dado ao comércio e a mudanças, pois “aceita facilmente inovações”.
Apresentava estatura regular, com predomínio do tipo moreno, sendo frequentes loiros e de cabelos castanhos. Se o marítimo era mais bulhento, o serrano, por sua vez, mais desconfiado.
Pouco amantes da vida militar, “repugnância que vai contudo desaparecendo”, uma vez “incorporados e em campanha, [os algarvios] batem-se bem”.
Feito o serviço militar, seguia-se o casamento, e “bem depressa se encontra rodeado de filhos”.
A habitação, para a maioria da população, era simples e muito branca, de rés do chão, telhado de duas águas, com poucas divisões e janelas só numa frente. Quase sempre com varanda e um alpendre ou poial por fora.
Os lavradores de maiores recursos tinham uma casa mais abonada de dois pavimentos. Junto à habitação, quase sempre comunicando com ela, encontrava-se o estábulo dos bois e a cavalariça.
No exterior, localizava-se o forno e a pocilga, onde se criava o porco. Internamente, a casa tinha também muita simplicidade, com paredes caiadas e tetos de telha vã e cana.
O mobiliário, geralmente de castanho, compreendia algumas cadeiras, arcas e cómodas, “sempre cobertas de panos brancos muito engomados”, e em cima dos quais “um Cristo ou um tocador”.
Cozinhava-se à lareira, e, quanto a utensílios de cozinha, “são pouco complicados”, afinal a “família em geral come toda de um mesmo prato, bastante grande”, sendo a louça arrumada numa prateleira muito “sarapintada”, pregada na parede.
Em casa, nunca faltava a pequena mó, destinada a moer o milho para o xerém, bem como a barrica, onde se guardava o figo torrado, “alimento de inverno e que, na falta de peixe, serve de conduto”.
Nos quartos, usavam-se “correntemente camas de ferro, a que chamam de «leitos»”. A iluminação fazia-se a azeite, em candeias ou candeeiros de folha ou latão (arame), embora em Faro já existisse eletricidade.
Relativamente ao vestuário, este “não tinha nada de particular”. O homem, sempre calçado, usava jaqueta, calça apertada, chapéu de feltro de grandes abas e no trabalho, uma blusa de riscado, sendo que a “cinta preta nunca os abandona”.
A mulher vestia saia não muito rodada, uma blusa, muitas vezes chapéu de feltro, parecido com os dos homens, lenço e xaile. Andavam calçadas e todas procuravam “possuir o seu cordão e argolas”. Nos dias de festa, trajavam melhor, predominando ainda assim as cores escuras.
Os mercados, feiras e romarias tinham afluência assegurada. Nestes dias, as gentes do campo dirigiam-se às sedes de freguesia, participavam na missa e faziam compras, “bebem o seu copo e há grossa confusão, mas sem consequências maiores do que algum tombo”.
Os homens de idade visitavam-se e os rapazes jogavam à malha, passeavam, conversavam nas vendas, e à noite “vai-se na época própria para os bailes”. Já a população urbana ficava em casa ou dispersava-se pelos campos próximos.
Amantes da dança e de música, os bailes decorriam com entusiasmo, ao som do harmónio ou de gaita e terminavam “quási sempre antes de irem para o trabalho”.
Havia muita falta de entretimentos, a não ser em tabernas, que, em algumas terras, atingiam número elevado. Bebia-se por isso muito álcool, “homens e mulheres tem o hábito de matar o bicho e o pior, é que muitos, quer no litoral quer na costa, fazem-no com aguardente, que se fabrica bastante na província, de figo e medronho, principalmente”.
As gentes do mar tinham uma vida monótona, “o tempo não lhe sobeja para divertimentos, só o mau tempo lhes dá folga participando então em feiras e romarias, tal como as gentes do campo”.
Viviam a maior parte do tempo afastados dos povoados, estabelecidos em cabanas de colmo “que se vêem ao longo da costa, em frente das suas armações”. Os pescadores são arrojados e os de Olhão têm justificada celebridade.
Muito supersticiosos, “a consulta à bruxa é frequente”, procuravam o médico, como segunda opção, a “medicina é exercida por numerosos curandeiros, alguns dos quais, possuindo certa habilidade, fazem uma terrível concorrência aos médicos”.
O pequeno guia não esqueceu as praias, classificando-as de esplêndidas, limpas, seguras, reputadas e concorridas, de tal forma que “raras vezes o banhista deixa de tomar banho, por via do estado do mar”.
Estes eram sobretudo algarvios, mas também alentejanos, e, a leste, espanhóis. As mais concorridas eram a Praia da Rocha e Monte Gordo, evidenciando-se ainda a Senhora da Luz, Armação de Pera, Albufeira e Quarteira.
Na Rocha, havia diversas construções, um hotel-casino e estação telegráfica, pelo que o seu desenvolvimento era considerado “seguro”.
A excelência do clima e suavidade da temperatura, bem como a existência de pontos interessantes nas proximidades, levavam Sousa Leal a prognosticar para aquela praia uma “estância invejável e uma óptima estação de inverno e repouso”.
Na verdade, há um século as praias estavam longe de constituir um produto turístico, pelo que foram praticamente excluídas do capítulo “Turismo”.
Este logo vaticinava: “a província merece ser visitada, mas o touriste não vai encontrar que admirar, mais que belos campos e formosas praias”. “Monumentos faltam”, eis o chavão, errado na nossa opinião, que perduraria até hoje.
“Para bem se ver e avaliar a província, necessitam perderem-se uns dias, poucos”. A visita era desaconselhada e considerada “imprópria” no verão, pelo calor excessivo.
A primavera deveria ser a estação eleita, “época em que a temperatura é moderada e em que floresce a amendoeira, o que dá à região um lindo aspecto”.
Quanto a atributos, também eles enredados com aspetos menos positivos, referia: “a vida é barata, os hotéis são modestos e nada caros; deixam bastante a desejar em certas comodidades e exigências modernas, mas a alimentação é boa”.
Eis um retrato fugaz de um pequeno guia que traçou, com rigor e nas diversas vertentes, a realidade de um Algarve de hábitos e costumes há muito desaparecidos.
Uma região que despontava tenuemente para o turismo, que se tornaria o principal motor económico nos nossos dias. Uma outra realidade, um outro modo de vida, hoje tão irreal quanto maravilhoso, todavia um Algarve verídico em que os nossos bisavôs viveram e que tão bem conheceram.
Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de História Local e Regional