O Outono de 1921 foi um dos mais negros da história recente de Portugal. A um quadro económico-financeiro difícil, associou-se um incremento da instabilidade política e social. Para o diário lisboeta “A Capital”, na edição de 10/11/1921, Portugal vivia “uma atmosfera de terror, uma obra de ruína incessante, tais são os aspectos que uma agitação permanente promove e delineia. Aqui as chacinas, os incêndios, os descarrilamentos. Quase não há tempo de respirar”.
A 19 de Outubro, num episódio sinistro que ficaria conhecido por “noite sangrenta” eram assassinados, em Lisboa, os mais destacados dirigentes do Partido Republicano. Entre outros, foram fuzilados Machado Santos (o herói da Rotunda, no 5 de outubro de 1910) e Carlos da Maia (olhanense, oficial da marinha de guerra e figura proeminente do partido), enquanto o primeiro ministro António Granjo, era, nessa mesma noite, torturado até à morte.
Três semanas depois, um atentado terrorista, ao comboio do Algarve, chocava o país. Para “A Capital”, “poucas vezes se terá dado uma série de factos anormais, alguns mesmo monstruosos como os que ultimamente se teem registado entre nós”.
Pouco depois da meia noite do dia 9 de Novembro de 1921, entre as estações de Aljustrel (hoje estação de Castro Verde-Almodôvar) e a Figueirinha (já demolida), junto à herdade do Louriçal do Meio, ocorria um acidente ferroviário que logo se constatou que não fora casual.
O desastre da Figueirinha, como ficaria conhecido, catapultou o Algarve para primeiras páginas dos jornais da época, de que são exemplo “A Capital”, “O Século”, “Diário de Notícias” ou a “Ilustração Portugueza”. Apoiados nas suas notícias, tentaremos revisitar, quase um século depois, aqueles fatídicos dias, que enlutaram o país.
O comboio, composto por 14 carruagens (repartidas por furgões, vagão bagageiro, de peixe, uma carruagem de 1ª classe, duas de 2ª, um vagão com malas de correio, um salão cama e três carruagens de 3ª), saíra de Vila Real de Santo António, às 15h50, de 8 de Novembro, com hora prevista de chegada ao Barreiro, às 7h20 da manhã seguinte.
Nele viajavam perto de 200 passageiros, quando às 00h30, ao quilómetro 185, da linha do Sul (só a partir de Junho de 1925 começaram a circular comboios diretos pela linha do Sado), num local isolado, 29 quilómetros a sul de Beja, a locomotiva descarrilou, provocando um violentíssimo choque e uma “catástrofe terrível”.
A composição circulava a 50 ou 55 km/hora, imobilizando-se a máquina num terreno próximo, enquanto as carruagens que a seguiam galgavam sobre o vagão reboque, que estancou.
À exceção das três últimas, que ficaram carriladas, as restantes estilhaçaram-se, atingindo o amontoado de destroços cerca de 10 metros de altura.
Se nas últimas carruagens o acidente causou enorme susto e ligeiras escoriações, por entre os passageiros, nas primeiras, agora “reduzidas a massas informes”, partiam de todos os lados gritos de dor, “gemidos aflitivos e lancinantes”.
De imediato, a linha foi percorrida a pé por sobreviventes até à estação da Figueirinha, para obter socorros. Entretanto, foram acesas fogueiras e, com archotes, os passageiros que não sofreram lesões, bem como o diretor do Sanatório de S. Brás de Alportel, Dr. Alberto Sousa e o médico de Almodôvar, Dr. Jaime Silva, que circulavam na composição, prestaram o auxílio possível aos companheiros de viagem sinistrados.
O cenário foi descrito como “verdadeiramente horroroso”: feridos a agonizar, corpos desmembrados e pendurados nos destroços, um autêntico inferno.
Conhecida a tragédia em Beja, partiu daquela cidade às 3h55 um comboio socorro, com seis médicos, macas e autoridades, chegando ao local do acidente cerca das 5h00 da manhã. Também de Faro seguiu um outro comboio.
A notícia alvoroçou Beja, causando “geral consternação e a maior repulsa pelo nefando atentado”. A população acorreu à estação com o objetivo de conhecer pormenores do acidente e a identidade das vítimas. Também em Faro o acontecimento causou a “mais viva sensação (…) achando-se toda a gente indignada por tão horrorosa catástrofe”, noticiava “O Século”.
Às 12h45, ficava concluído o transbordo do comboio acidentado. O balanço das vítimas era, por volta das 17h00, de 10 mortos, estimando-se que outros tantos estivessem sob os destroços, e acima de 80 feridos. Destes, os mais graves (16) seriam transportados para Lisboa (Hospital de São José), onde chegaram pelas 18h30 daquele dia, enquanto os outros ficaram em Beja, no hospital civil (instalado no antigo convento de Santa Clara).
Na capital, mais de mil pessoas acorreram ao Terreiro do Paço, onde assistiram, em silêncio, à chegada dos mutilados, do “crime monstruoso”. Também no Barreiro centenas de populares se deslocaram à gare ferroviária.
O balanço das vítimas mortais acabaria por não ser tão trágico como se pensara inicialmente, dado que as carruagens dilaceradas eram as de 1ª e 2ª classe, que não transportavam muitos passageiros, ao contrário das de 3ª, que iam repletas.
Ainda assim, no local, sete pessoas perderam a vida. Os corpos foram transportados para Beja, num comboio fúnebre, ao fim da tarde daquele mesmo dia e depois transferidos de ambulância para a morgue do hospital, perante o olhar de uma gare apinhada de gente.
O velório decorreu na noite de 11 Novembro, no salão nobre da Câmara Municipal, que foi ornamentado com centenas de velas, colocadas no lustre, serpentinas e candelabros, enquanto o chão se achava atapetado de flores naturais. Já a bandeira nacional e o estandarte municipal, bem como o busto da República foram envolvidos em crepes negros.
A autarquia depositou sobre cada urna, uma coroa de flores com a dedicatória “Às desditosas vítimas do descarrilamento de 9 de Novembro de 1921”. Uma romaria incessante de populares de todas as classes sociais acorreu àquele espaço, durante toda a noite e manhã seguinte, prestando sentida homenagem às vítimas do atentado.
Cerca das 15h00, organizou-se um cortejo fúnebre para a estação de caminhos de ferro. Àquela hora, a Praça da República, não obstante alguma chuva que caía, encheu-se, trajando todos pesado luto, desde “os representantes das classes mais elevadas, até os mais modestos e obscuros operários e trabalhadores, todos se irmanando no mesmo sentimento de repulsa pelo nefando crime e de homenagem às desgraçadas vitimas que causou”.
Abria o cortejo uma força de infantaria 17, praças a cavalo da GNR, e nele se incorporavam a Academia Bejense, com os alunos vestidos de luto, Escola Primária Superior, escolas primárias dos dois sexos, filarmónicas da Sociedade Salvadense, 31 de Janeiro e Capricho Bejense, autoridades administrativas do distrito, representantes das autarquias da região e toda a população da cidade.
Antes de terminar a cerimónia discursaram, entre várias personalidades, o governador civil de Beja. Os féretros seguiram depois para as várias localidades de origem das vítimas, onde posteriormente decorreram os funerais.
Ainda na noite de 11, era reposta a circulação ferroviária no local do acidente, cessando os transbordos.
O atentado chocou e indignou o país. Em Vila Nova de Gaia, a autarquia aprovou um voto de sentimento, tal como em Alcácer do Sal, enquanto em Marco de Canaveses, só para citar três exemplos, “causou uma triste impressão o lamentável desastre na linha do Sul e Sueste, sendo todos unânimes em que taes criminosos não podem ficar impunes”, noticiava “O Século”.
Na verdade, as autoridades moveram de imediato uma caça intensa aos criminosos, enquanto a GNR passou a patrulhar toda a linha.
O bárbaro atentado fora precedido de três tentativas malogradas, todas na linha Sul e Sueste e sempre a comboios de passageiros.
Todavia, se dessas vezes os terroristas não obtiveram sucesso nos seus intentos, agora haviam arrancado dois carris laterais, com cerca de 8 metros e 240 quilos cada um (para substituição dos rails que não ofereciam segurança existiam, de 1000 em 1000 metros, dois carris laterais pregados a travessas de madeira), colocando-os deitados sobre o carril principal, no sentido longitudinal, com as sapatas do lado de dentro, presos com arames e parafusos. A operação foi executada, estimava o “Diário de Notícias” por 8 a 10 indivíduos, naquela mesma noite, dado que um comboio de mercadorias havia por ali circulado normalmente, cerca das 23h00.
As primeiras suspeitas recaíram sobre o pessoal ferroviário, que rapidamente declinou qualquer responsabilidade sobre tão trágico acontecimento, depois sobre anarquistas e bolchevistas (comunistas), que pretenderiam fomentar a eclosão de uma tentativa revolucionária.
Nos dias seguintes, foram presas várias pessoas e outras tantas libertadas, em Beja, Barreiro, Lisboa e Benavente.
A 14 de Novembro, “O Século” dava conta de várias diligências que não detalhava para “não prejudicar a acção das autoridades”, mas, em Dezembro de 1922, ainda não se conheciam os criminosos.
Os feridos, maioritariamente algarvios (S. Brás de Alportel, Faro, Lagoa, Albufeira, S. Bartolomeu de Messines, etc.), foram visitados pelo governador civil de Faro e lentamente regressaram a suas casas, registando-se pelo menos mais uma morte, de uma criança de 7 anos, que não resistiu aos ferimentos, vindo a sucumbir, no hospital, em Lisboa.
O desastre da Figueirinha faz parte dos acidentes ferroviários mais graves ocorridos em Portugal, com um balanço oficial de 9 mortos e mais de 90 feridos.
O crime foi caindo pouco a pouco no esquecimento, a Ditadura Militar e principalmente o Estado Novo apressaram-se a criar o mito de um país de brandos costumes, onde o atentado da Figueirinha não se enquadrava de todo.
No local do acidente, não existe qualquer memorial a tão negro episódio da história da ferrovia em Portugal e do Algarve, em particular.
Hoje, tal como então, é um sítio isolado e perdido na planície alentejana, onde até o silvo da locomotiva se deixou de ouvir, com o encerramento da linha da Funcheira a Beja, em Dezembro de 2011.
Por analogia, o vermelho da ferrugem dos carris não nos deixa esquecer que, há 95 anos, ali correu sangue de vítimas inocentes de um crime hediondo, preparado pela crueldade e maldade dos seus semelhantes, aqueles a que hoje chamamos “terroristas”.
Algumas das vítimas mortais:
Armando Pires (chauffeur e comerciante de automóveis de aluguer, Faro)
Ana dos Anjos Colares Pereira (Lisboa)
Amélia Adelaide da Silva (criada, Lisboa)
José Pimenta Avelar (serralheiro, Lisboa)
Eduardo Guerreiro (criança de 6/7 anos)
José Bartolomeu Carneiro (mestre de obras, S. Bartolomeu de Messines)
Alfredo Tocha da Silva (24 anos, comerciante, Vendas Novas/Barquinha)
Débora Eunice Vieira (ferido grave, de 7 anos, viria a falecer em Lisboa)
Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de História Local e Regional