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silves e paços do concelhoA 26 de Setembro de 1917, faz hoje 97 anos, o povo de Silves, cansado da fome que então grassava, assaltou os celeiros de alguns ricos proprietários agrícolas do concelho. Aqui fica a memória dessa rebelião.

Portugal vivia, em setembro de 1917, momentos dramáticos, tanto a nível social, como político e económico. Na realidade, esses momentos estendiam-se a toda a Europa, ou não decorresse no velho continente a I Grande Guerra.

Se, por si só, o conflito justificava as difíceis condições de vida da maioria dos portugueses, um outro fator veio agravá-las ainda mais – as condições climatéricas.

Para um país pobre, rural e quase totalmente dependente da agricultura, os maus anos agrícolas ocorridos entre 1912 e 1918, ora com grandes pluviosidades, ora com secas, como a de 1917, vieram tornar a situação social explosiva.

Para um país pobre, rural e quase totalmente dependente da agricultura, os maus anos agrícolas ocorridos entre 1912 e 1918, ora com grandes pluviosidades, ora com secas, como a de 1917, vieram tornar a situação social explosiva

Se a agitação civil, consequente do aumento do custo de vida, se fez sentir logo em setembro de 1914, com tumultos um pouco por todo o país, ela iria intensificar-se nos anos seguintes, tornando-se trágica em 1917. Greves, assaltos a padarias, hortaliças (Revolução da Batata), celeiros, etc., tornaram-se comuns e normais por todo o país, face à fome e à miséria que grassava por entre as populações, em suma, a Crise das Subsistências, como ficaria conhecida.

O Algarve não era alheio a esta terrível realidade e a alteração da ordem pública foi transversal a toda a região. Em Silves, um dos momentos mais desesperantes daqueles anos críticos ocorreu no dia 26 de setembro de 1917.

O povo amotinado invadiu e saqueou os celeiros da cidade. Embora os produtores estivessem, por lei, obrigados a arrolar todos os excedentes das suas produções e a cedê-los à Câmara ao preço de tabela, de forma que esta garantisse o abastecimento das populações, tal nem sempre acontecia.

I GuerraA Comissão Executiva (Câmara de Silves) oficiara, em agosto daquele ano, a diversos proprietários pedindo o seu auxílio na cedência de cereais, porém e, à exceção de oito, todos os outros informaram não poder anuir por não os terem em quantidades suficientes (o que nem sempre era verdade, porém os preços de tabela geralmente muito baixos não satisfaziam os produtores).

A sublevação dos silvenses a 26 de setembro de 1917 foi noticiada e descrita na edição de 30 de setembro do periódico local “Voz do Sul”. Intitulada: “Um movimento em Silves – por causa da crise das subsistências levanta-se o povo estando a ordem perfeitamente assegurada” a notícia diz (com a grafia da época):

“Na quarta-feira passada [26 de setembro de 1917], pelas onze horas da manhã levantou-se o povo de Silves, derigindo-se ordeiramente para a Administração do Concelho1, reclamando a presença da autoridade para o acompanhar a casa de diversos proprietários onde constavam existirem géneros de 1ª necessidade com abundância: como não estivesse, nesse momento, aquella autoridade, nem quem a substituísse, o povo derigiu-se para o claustro dos Paços do Concelho, onde falaram diversos oradores operários, deliberando ir todos a casa desses proprietários, e trazer os géneros que encontrassem para os depósitos da Câmara Municipal. Rapidamente irradiaram para diversos pontos da cidade comissões de operários, fazendo-se acompanhar de carros, trazendo avultadas porções de cereais – trigo, cevada, grão, milho, feijão e ervilha que iam depositando no largo e arcadas da Câmara, tomando o movimento um aspeto absolutamente ordeiro (…).”

silves antiga_3Apesar de a notícia referir, por diversas vezes, que tudo terá decorrido na “mais ordeira ordem”, dificilmente assim terá acontecido, como se depreende dos termos usados nos telegramas que o governador civil de Faro, cargo então ocupado pelo Dr. Francisco Vieira, um notável médico de Silves, endereçou, ainda no próprio dia 26, ao seu homólogo de Beja e ao ministro do Interior.

O telegrama para o primeiro referia: “Tenho neste momento cidade de Silves revoltada falta de pão. Requisições ou compras feitas (…) são destinadas a acudir várias povoações deste distrito (…) visto haver aí muito trigo. Deixo à sua consciência resolução do caso (…).”

Já o ministro do Interior foi informado da forma seguinte: “Povo concelho de Silves revoltou-se assaltando casas donde tiraram géneros. Em Faro há agitação por causa saída de figo e noutros pontos há pronúncia de alteração da ordem pública. Digne-se V. Exa. mandar reforçar guarda republicana distrito e entender-se Comissão distribuição cereais para autorizar trânsito farinha e trigo pedidos para esta província há muito tempo. Urgência”.

A situação era muito difícil no Algarve, mas em Silves era caótica, por isso o governador civil apelava à consciência do seu congénere de Beja e alertava o ministro do Interior para a tomada de medidas urgentes.

silves antiga_1Na verdade uma população faminta a assaltar celeiros de forma serena era algo difícil de aceitar, ainda para mais quando as suas suspeitas se concretizaram ao encontrarem “avultadas porções de cereais”.

Só de António Gonçalves Gosma foram confiscadas duzentas arrobas de batata.

A mitigação dos acontecimentos pelo jornal “Voz do Sul” não será alheia à sua orientação política, ou não ostentasse em subtítulo “Órgão do Partido Republicano Português”, à época também designado por Partido Democrático. Partido que, além de presidir à Câmara da cidade, chefiava o Governo do país e era um dos principais responsáveis pela participação de Portugal na guerra, e logo, indiretamente, pela terrível situação que se vivia.

Ainda no próprio dia 26 a GNR é reforçada, quer em cavalaria quer em infantaria, mas tal não impediu que, no dia seguinte, continuasse a mesma “azáfama”, como referiu o “Voz do Sul” na mesma edição:

“(…) No dia seguinte continuou a mesma faina por parte dos operários, tendo a autoridade enviado guarda para alguns pontos onde lhe constou que os proprietários se não conformavam com tal sistema de arrolamento (…). As medidas de força não foram, como sempre sucede, bem vistas pelo povo e daqui resultou protestos contra a autoridade, redobrando esses protestos pelo facto de alguns editais que mandam encerrar estabelecimentos e não permitiam grupos depois das 9 horas”.

O sucesso do movimento operário não terá sido alheio à ausência das principais entidades da cidade, como o presidente e o administrador do concelho. A rebelião acabaria, porém, por ser presenciada por um vereador, o qual entendeu tomar de imediato algumas providências, das quais deu nota na reunião de 1 de outubro da Comissão Executiva.

silves antiga_2Assim, determinou que “se arrolassem os géneros depositados, pesando-se ou medindo-se, para se poderem prestar contas aos donos, o que tudo se fez dentro do maior escrúpulo e com o melhor acerto que lhe foi possível”, justificando-se depois, “talvez que esta atitude não fosse a que todos desejavam, mas o contrário, nos difíceis momentos que correm, seria alarmar o espírito público, sem vantagens para ninguém”.

A Câmara, proibida pela Administração do Concelho de dispor de imediato dos cereais pilhados pela população, deliberou informar todos os proprietários dos géneros entregues no celeiro municipal, dando-lhes um prazo de trinta dias para apresentarem as suas reclamações, caso contrário seriam indemnizados em dinheiro, aos preços da tabela.

A título de curiosidade refira-se que só dois não apresentaram reclamação, todos os outros o fizeram e por vezes de uma forma menos própria, levando a Comissão Executiva a lavrar um voto de protesto “contra os termos menos corretos, em que vêm algumas reclamações”.

A crise acentuou-se nos meses seguintes, contudo o assalto aos celeiros particulares pela população de Silves, em 26 de setembro de 1917, constituiu o ato mais ousado na cidade e no concelho durante aqueles terríveis anos da I Grande Guerra.

 

 

Aurélio Nuno Cabrita
Aurélio Nuno Cabrita

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de História Local e Regional

 

Nota: O administrador de concelho era o delegado do governo central junto de cada um dos municípios do país. Exercia, entre outras, as competências de garantia da boa aplicação das leis e dos regulamentos da administração pública, e de autoridade policial. Estava subordinado ao governador civil.

 

 

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