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A peça «Os Filhos do Fogo de Deus» apresentou-se este sábado no melhor sítio possível: no edifício conhecido como Mercado de Escravos, em Lagos, a curta distância do cais quatrocentista, onde, em 1444, teve lugar a primeira venda de escravos negros na Europa.

É que a peça, que mistura sessão de contos, com leitura de excertos da literatura ou de documentos históricos de Portugal e do Brasil, música e arte dramática, trata sem “paninhos quentes”, o tema da escravatura, de que tão pouco se fala no nosso país.

A apresentação, a cargo do ator e músico algarvio Mário Spencer e do ator e contador de histórias brasileiro Thomas Bakk, foi feita perante um público que seguiu de forma atenta e até emocionada, na sua maioria em pé, ao longo de quase uma hora, as histórias terríveis do tráfico de escravos, iniciado pelos portugueses, entre África e o Brasil, com os seus horrores e as suas imensas hipocrisias.

O talento e a intensidade dos dois atores transportou os espectadores para essas viagens a bordo dos navios negreiros, onde os escravos mal tinham espaço para respirar e onde tantos e tantos acabavam por morrer ou por adoecer, sendo atirados ao mar quando ainda nem mortos estavam. Ou levou-os aos campos da cana de açúcar do Brasil, onde os escravos eram mercadoria barata, mais mal tratados que animais, e onde os senhores separavam famílias e até vendiam, como escravos, os seus próprios filhos…

A apresentação foi um dos pontos altos do Festival dos Descobrimentos que, de 27 de Abril a 1 de Maio, teve lugar na zona ribeirinha de Lagos. E nem os bombos e gaitas de foles de animação do festival que de vez em quando se ouviam, afastou as pessoas que assistiam ao espetáculo, em silêncio e algumas de lágrimas nos olhos.

Uma das espectadoras atentas foi Joaquina Matos, a presidente da Câmara de Lagos, que não arredou pé até ao fim do espetáculo. «Não conhecia esta peça, nem este grupo, mas é muito importante falar do tema da escravatura aqui na nossa cidade e em todo o país», disse a autarca ao Sul Informação.

Tela Leão, da associação Partilha Alternativa, responsável pela direção artística e pelo guião, recordou que a peça tem estado a ser apresentada um pouco por todo o Algarve e que a sua intenção é levá-la não só a salas de espetáculos, mas a escolas, a partir do 9º ano.

Depois de uma recente apresentação na Escola EB 2,3 de Vila do Bispo, é agora a presidente da Câmara de Lagos, ela própria uma antiga professora, a manifestar o interesse em levar a peça às escolas secundárias da cidade, em breve.

Tela Leão salientou a importância de continuar a falar desta história que, afinal, até está bem presente nos tempos de hoje e mesmo aqui no Algarve e no Alentejo. É que, nas estufas que têm invadido este nosso sul, trabalha sobretudo mão de obra barata, importada de países longínquos, a viver em más condições e com poucos ou nenhuns direitos laborais. Não é bem escravatura, mas…

O edifício conhecido como Mercado de escravos, em Lagos, em cujo átrio se apresentou a peça «Filhos do Fogo de Deus», foi construído no local onde funcionou o que se presume tenha sido o primeiro Mercado de Escravos da Europa quatrocentista, em Lagos. Por essa razão, foi classificado há três anos como monumento de interesse público.

Acolhe agora o Núcleo Museológico Rota da Escravatura, ligado ao Museu de Lagos, inaugurado em Junho do ano passado.

A partir de 1444, data do primeiro mercado de escravos em Lagos, segundo a «Crónica da Guiné», de Gomes Eanes de Zurara, a cidade passou a receber todos os anos carregamentos regulares de escravos, que eram normalmente capturados em razias ou adquiridos por troca na costa ocidental de África. Uma memória triste, que não foi esquecida nesta edição do Festival dos Descobrimentos, com a apresentação da peça do grupo Partilha Alternativa e uma recriação de um mercado de escravos.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues|Sul Informação

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