A 20 de novembro de 1931 chegava ao Algarve, com quatro horas de atraso, o ministro das Finanças António Oliveira Salazar. A visita, “verdadeiramente inesperada”, nas palavras do “Diário de Notícias”, tinha como objetivo observar “in loco” os problemas da indústria conserveira, com vista à sua organização.
Os protestos dos industriais eram por aqueles dias muito frequentes, ou não fossem as conservas vendidas com um prejuízo de 30% sobre o preço de custo.
Apesar de as dificuldades remontarem a meados dos anos de 1920, provocadas em grande parte pela valorização do escudo em 1924, e pela terrível escassez de peixe no ano seguinte, a situação agudizava-se cada vez mais.
No início da década de 30, o sector encontrava-se dividido face às soluções a adotar. Enquanto a cartelização era reclamada por alguns, outros desejavam a intervenção reguladora do Estado.
Nessa altura, a exportação de conservas ocupava um distinto segundo lugar, apenas precedida pelos vinhos. O interesse do ministro das Finanças pelo setor explicava-se assim pela sua importância nas exportações nacionais e no deficit comercial português.
Após visitar Évora e pernoitar em Beja, era Oliveira Salazar aguardado em Vila Real de Santo António à hora de almoço, daquela sexta-feira, 20 de novembro. Às 14h00, porém, ainda o ministro, juntamente com o seu chefe de gabinete Leal Marques, e o Eng. Sebastião Ramirez (industrial de Vila Real de Santo António e presidente da secção de conservas da Associação Industrial Portuguesa), não havia transposto a serra algarvia, onde era aguardado pelo comandante da Polícia do distrito, o capitão Maia Mendes.
Viagem começou com carro atascado em Castro Verde
A viagem decorria em automóvel, contudo o carro atascou, nas proximidades de Castro Verde, onde a estrada estava ainda em construção.
Esta contrariedade levou a uma paragem forçada da comitiva, “tendo sido necessário aguardar o auxílio de uma junta de bois” para tirar o veículo daquela posição, como noticiava dias depois o semanário farense “Correio do Sul”.
Este obstáculo levou a que o “eminente estadista” chegasse a Faro pelas 17h25, tendo-se dirigido de imediato para Vila Real de Santo António, onde chegou pelas 18h40.
Pouco depois de se hospedar no Grande Hotel Guadiana, recebia António de Oliveira Salazar os cumprimentos das autoridades locais e do governador civil, capitão João Carlos Mendonça, que para ali se deslocara propositadamente.
Após o jantar deu o ministro um pequeno passeio pela vila, acompanhado por Sebastião Ramirez, Matias Sanches (presidente da Comissão Administrativa da Câmara), tenente Rebelo (administrador do concelho), José Sanches, Frederico Ramirez, João Barroso e Mário Ramirez, tendo visitado as novas instalações da capitania do porto, a futura escola de pesca e o novo edifício da escola primária Sousa Coutinho, tecendo, de acordo com o periódico “A Voz”, “elogios pela forma como tudo estava disposto”.
Na manhã seguinte e acompanhado pela mesma comitiva da noite anterior, bem como pelo governador civil, visitou Oliveira Salazar diversas fábricas de conserva de sardinha e de atum, como a Ramirez & C.ª, a Parodi, a Aliança e uma de produção de vasilhame, a Sanches & Barroso.
Inteirou-se em cada uma delas do respetivo funcionamento, condições dos mercados, vida dos operários, salários e preços de venda. Por fim visitou rapidamente as obras do porto e a Câmara Municipal, almoçando de seguida no Grande Hotel Guadiana.
Industriais esperavam resultados da visita do ministro das Finanças
Pelas 13h30, dirigiu-se a comitiva de automóvel para Olhão, onde chegou cerca de uma hora depois. Na fábrica Ramirez, era o ministro aguardado pela Comissão Administrativa do Município, Associação Comercial e Industrial, entre outras entidades (Junta Autónoma do Porto Faro-Olhão, Comissão Concelhia e Distrital da União Nacional, representadas, respetivamente, por coronel Cochado Martins, Justino Bívar e Mário Lyster Franco, e ainda pelo Comendador Ferreira Neto).
Após a apresentação de cumprimentos, de acordo com “O Século”, o presidente da Associação Comercial afirmou que os industriais que ele representava “viam com prazer, a visita daquele membro do Governo, esperando que dela resulte algum benefício para essas indústrias, que tão abandonadas têm sido e que necessitam de ser sujeitas à fiscalização do Estado.” Salazar respondeu “que ia estudar o assunto”.
O ministro visitou depois a fábrica Júdice Fialho, onde foi guiado por D. António Sousa Coutinho, genro do proprietário e por Emiliano Ramos, a que se seguiu a J. N. Pité, Lda.
Esta última encontrava-se em laboração, tendo o ilustre visitante observado detalhadamente e questionado alguns dos trabalhos. Ao percorrer a vila manifestou Oliveira Salazar desejos de subir a uma açoteia, para observar o aspeto geral de Olhão, que consideraria curiosíssimo a partir do mirante de Arnaldo Martins.
Seguiu-se por fim a visita à fábrica José Reis Silva e Tomé, Lda.
O petiz que pediu a Salazar um emprego para o pai
Após uma breve paragem em Santo António do Alto, para admirar o panorama, o ministro das Finanças chegou a Faro pelas 16h30. Visitou então o Museu Marítimo no Departamento Marítimo do Sul, no Largo da Sé, onde era aguardado pelo respetivo chefe, o capitão Ramalho Ortigão e pelo adjunto deste, capitão-tenente Guerreiro Brito, e demais oficiais da Marinha.
Na visita ao museu foram os objetos pormenorizadamente descritos pelo capitão Ortigão, tendo, segundo o DN, despertado principalmente o interesse do insigne visitante “os modelos de armações de atum e sardinha, e os dos cercos americanos e à valenciana.”
Efetuou-se de seguida uma demorada conferência, na qual Salazar manifestou o desejo de que “as conservas portuguesas se acreditem cada vez mais, no estrangeiro, e não sejam prejudicadas com produtos pouco cuidados”, conforme noticiou “O Século”.
Terminada a conferência e quando o ministro entrava para o automóvel que o levaria a Portimão, ocorreu um episódio que emocionou todos os presentes e que se tornou indissociável da visita de Salazar à região. Um aluno do Liceu João de Deus, José Cabrita Matias, de 12 anos, abeirou-se do ministro e pediu-lhe que este intercedesse para que o pai, António Gonçalves Matias, fosse nomeado remador da Alfândega.
Argumentava o petiz que o pai estava desempregado há alguns anos, e não obstante ser combatente da Grande Guerra, aguardava há quatro meses a deferência do requerimento, sendo somente a sua mãe, costureira de profissão, que sustentava o aglomerado familiar, composto por seis pessoas. O ministro afagou o garoto e prometeu interessar-se pelo assunto, pedindo-lhe que escrevesse para Lisboa.
Pouco destaque na imprensa para a visita ao Barlavento algarvio
Se a imprensa da época descreveu com todos os pormenores a visita ao Sotavento algarvio, foi muito parca em conteúdos sobre o Barlavento.
Assim, sabe-se que, pelas 19h45 era Oliveira Salazar recebido em Portimão, pelo tenente Amado da Cunha (administrador do concelho), comandantes da Guarda-fiscal e GNR, entre outras entidades, e grande número de portimonenses.
Na manhã seguinte, no dia 21 de novembro, e depois de sair do Hotel Central, onde se hospedara, o ministro visitou a Praia da Rocha, cujos encantos apreciou com interesse, a igreja matriz e os mercados municipais, seguindo depois para Lagos, onde percorreu a baía de barco (gasolinas).
Dali dirigiu-se a Sagres onde visitou a fortaleza, e lhe foi indicado o local onde se projetava erguer a estátua ao infante D. Henrique.
De regresso a Portimão, visitou a fábrica de conservas de Caetano Feu e observou uma exposição de conservas, improvisada no Hotel Central. Terá ainda visitado a fábrica Fialho.
Pelas 16h30 partiu para S. B. Messines onde embarcou no comboio rápido para Lisboa. O semanário “Comércio de Portimão” refere também que o ministro ter-se-á ainda deslocado às Caldas de Monchique.
Para um correspondente do católico “Folha de Domingo”, Cincinatus, dois acontecimentos marcaram a visita ministerial de Oliveira Salazar ao Algarve: primeiro “a comoção que lhe causou [ao ministro] a expontânea e viril exposição dum pobre e pequeno estudante que lhe pediu protecção para a sua infeliz família (…); segundo, a pergunta que fez a alguém duma das terras em que estacionou «mas os srs. têem verba no orçamento para esta despesa?…”.
Salazar fez estudo sobre a indústria conserveira do Algarve
Na sequência desta visita, o ministro das Finanças elaborou um estudo, “Notas sobre a Indústria e o Comércio de Conservas de Peixe”, concluído poucas semanas depois, a 7 de Dezembro.
Neste fez Oliveira Salazar, segundo a historiadora Maria João Raminhos Duarte, na obra “Portimão – Industriais Conserveiros na 1ª metade do Século XX”, um diagnóstico da indústria, analisando os vários aspetos da deficiente organização industrial e comercial, da vida operária e assistência social do setor conserveiro.
Se algumas das soluções apresentadas foram generalistas, ele traçou claramente o rumo a tomar: a reorganização da indústria deveria centrar-se na exportação, na resolução dos problemas inerentes ao mercado externo e à concorrência e, para tal, a intervenção do Estado era imprescindível e inadiável.
Todavia, se a reorganização da indústria conserveira não seria célere, em Janeiro de 1932 a imprensa regional noticiava a admissão do pai do petiz José Cabrita Matias, como remador na Alfândega de Faro, um gesto do ministro das Finanças, “que não pode deixar de calar profundamente na nossa alma”.
Apesar de desempenhar funções ministeriais durante quarenta anos, António de Oliveira Salazar apenas voltaria ao Algarve mais duas vezes, ambas já como presidente do Conselho (como então se designava o cargo de primeiro ministro).
Mas agora, em novembro de 1931, era apenas um destacado ministro das Finanças, ou melhor um “eminente estadista”, que prometera equilibrar as finanças do país.
Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional