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Será que existe um festival de música sacra erudita, mas que lhe junte flamenco e cante alentejano, que leve os participantes a descobrir o património cultural de cada terra e os ponha em contacto com a biodiversidade e que até consiga pôr a embaixadora dos Estados Unidos da América de enxada na mão a plantar um sobreiro? Existe sim e chama-se Festival Terras sem Sombra.

A poucos dias de mais um fim de semana intenso dedicado à música e ao património cultural e natural, desta vez em Serpa, o Sul Informação mostra-lhe como foi uma jornada anterior do Terras sem Sombra, em Santiago do Cacém.

Tudo começou na tarde de sábado, dia 25 de Março, com a visita guiada ao património da cidade, coroada pelo castelo, que alberga o cemitério no seu interior, e pela igreja matriz dedicada a Santiago Maior, onde à noite havia de ter lugar o concerto.

Guiados por José António Falcão, historiador de arte e diretor geral do festival, o grupo de mais de meia centena de pessoas teve oportunidade não só de descobrir mais sobre os monumentos e as memórias históricas com que estão pejadas as ruas de Santiago do Cacém, como o privilégio de entrar em locais que, por serem privados, normalmente estão vedados ao público.

Foi o caso do palacete na praça Conde Bracial, ainda hoje pertencente e habitada pela família desse nobre, um imponente casarão dos muitos que formam aquele importante largo.

Aí, o grupo dividiu-se em três. A repórter do Sul Informação integrou o grupo que foi guiado pelo arquiteto Ricardo Pereira, que deu a descobrir a beleza das três salas desse palacete forradas a precioso e raro papel de parede, datado de 1814, 1840 e 1880.

Todo este papel de parede foi produzido em França, numa época em que cada rolo era feito à mão e impresso com moldes de madeira, apresentando um estilo «ainda Império, mas já com gosto romântico».

E se hoje papel de parede é coisa corriqueira, naquela época, há 200 anos, era algo de precioso. De tal forma que, como explicou Ricardo Pereira, «desta série vamos encontrar alguns rolos no Victoria and Albert Museum, em Londres». «Em França, são peças classificadas», acrescentou, referindo-se a rolos do mesmo papel de parede que cobre uma das salas do palacete desta cidadezinha do Alentejo.

«São peças que estão aqui há quase 200 anos. É preciso saber viver com esta decoração, que tem sido passada de geração em geração da família e chegou aos nossos dias num estado fantástico de conservação», sublinhou Ricardo Pereira.

E se uma das salas parece estar situada numa exuberante floresta, a seguinte mostra nas suas paredes os monumentos de Paris. A sala mais recente, com papéis datados de 1880, «lembra o último gabinete de D. Luiz no Palácio da Ajuda», frisou o guia.

A visita seguiu depois para a Sociedade Harmonia, fundada em 1840, à qual esteve ligado, por exemplo, o escritor Manuel da Fonseca (que era natural de Santiago do Cacém), mas onde, como recordou uma das pessoas da terra que participava no passeio, «muita gente deixou a sua fortuna na mesa do jogo». É que, durante muitos anos, este era um clube ligado à elite da terra, e nas suas salas jogava-se, forte, a dinheiro, sendo mesmo essa uma das principais fontes de financiamento.

E se hoje ainda por lá se joga à sueca, há muito que os tempos do jogo passaram. De tal forma que a antiga sala onde tantas fortunas se perderam acolhe hoje aulas de formação em informática. No salão, que era para o teatro, mas acolheu o primeiro cinema da terra, fazem-se hoje bailes e festas. Há dois grupos corais, aulas de piano, danças de salão, fitness e ioga.

Seguindo pelas ruas, o grupo há-de passar pelas antigas Casas da Comenda, que foram sede da Ordem de Santiago e até eram fortificadas, e que hoje estão a ser restauradas por um jovem casal, que irá fazer aí a morada da sua família.

Ali ao pé, ficava a Judiaria, ainda se podendo ver o local onde, à noite, se trancava os portões, fechando os judeus no seu gueto. Como recordou José António Falcão, durante o dia todas as comunidades de Santiago do Cacém conviviam com normalidade, nos seus negócios e mesteres, mas, durante a noite, nenhum judeu podia sair do gueto, nem nenhum cristão entrar, sob pena de morte.

Mais abaixo, a jovem artista local Raquel Ventura mostrou a passagem em túnel sob um prédio, que antes era um local escuro e perigoso, evitado pelos moradores, mas que hoje, graças a um projeto de intervenção artística, mudou completamente a sua face.

Hoje, as paredes do túnel, bem iluminado, estão cobertas de pinturas, retratando lendas locais, personagens da terra e das ruas vizinhas, cenas dos campos em volta de Santiago. A pintura desses murais resultou de um projeto comunitário, que envolveu os vizinhos do túnel tanto na escolha dos temas como na pintura. E o resultado é que hoje já ninguém tem medo de por lá passar.

O grupo seguiu depois para o Museu Municipal de Santiago do Cacém, que está instalado na antiga cadeia da então vila. O seu espólio é sobretudo composto por peças etnográficas, que retratam facetas da vida de outrora – o alfaiate, a costureira, o quarto de dormir, o barbeiro – expostas nas antigas celas da prisão. Numa delas, um catre no chão mostra como era dura a vida dos presos de antigamente.

A terminar uma tarde intensa de passeio cultural, foi preciso subir ao Moinho da Cumeada, restaurado e a funcionar. A visita foi acompanhada por José Matias, «uma das maiores autoridades nacionais e internacionais em moinhos», e ainda por Jorge Fonseca, o moleiro.

José Matias recordou a «cultura moageira de Santiago do Cacém», onde, «até meados da década de 40 do século passado, trabalhavam 12 moinhos a produzir farinha, de trigo e de milho, e a descascar arroz».

O moinho que o grupo visitava existe naquela cumeada com vista para Santiago desde 1813 e funcionou até 1966. Em 1970, o município comprou-o para o transformar em depósito de água – «onde já se vou um moinho morrer afogado», comentou José Matias – mas «felizmente esse projeto nunca avançou».

A Câmara acabou por restaurar o moinho em 1982, que se tem mantido em funcionamento, mais com fins turísticos e pedagógicos, até hoje.

Há pouco, foi feito um novo restauro no moinho, com a substituição do mastro e das varas (mantiveram-se as quatro velas latinas antigas), com a colocação de cordames novos e a substituição do sobrado da sala de moagem. O veio foi também reparado.

O moinho, salientou ainda José Matias, tem duas portas, porque «naquele local, à data da construção do moinho, havia dois regimes de vento: Norte/Noroeste e Sul/Leste». E todo o sistema de mastro e velas era rodado para um lado ou para o outro, de modo a tirar partido do melhor regime de ventos do dia.

O especialista chamou também a atenção para os búzios, as peças que adornam as varas, produzindo um som característico, como se o moinho cantasse. «Chamam-se búzios, porque antes eram mesmo usados búzios do mar, depois passaram a usar cabaças e agora são estas peças em barro, com a forma de cabaças».

Quanto às velas, os moleiros tinham um código especial segundo o formato que lhes davam, para significar que não havia vento, que os clientes já podiam trazer o cereal ou que estavam de luto, entre muitas outras mensagens.

À noite, foi a vez do concerto, numa igreja de Santiago Maior apinhada de gente. Entre o público, estava o professor Fernando Pádua, que foi convidado por ser «uma personalidade médica que personifica o que o Festival Terras sem Sombra defende», a harmonia com as vivências do Baixo Alentejo.

Num ano em que o Festival até escolheu o azeite como produto a promover – numa parceria com a Cooperativa Agrícola de Beja e Brinches -, Fernando Pádua, fundador da Fundação Portuguesa de Cardiologia, antes do concerto salientou a necessidade de «saber viver com saúde, aproveitando da vida aquilo que ela tem de bom e de artístico».

A música esteve a cargo do Brentano String Quartert, quarteto da norte-americana Yale School of Music, que esteve a fazer uma tournée pela Europa, tendo-se apresentado nas maiores salas de capitais como Berlim, Madrid ou Londres, mas se deixou cativar pela possibilidade de tocar numa pequena cidade do Alentejo.

Apresentando “Perpétuo Movimento- Em torno d’A Arte da fuga”, o quarteto interpretou com virtuosismo um programa belo, mas algo difícil para o público não melómano.

Na plateia, além de Fernando Pádua, o concerto contou ainda com a Encarregada de Negócios dos Estados Unidos da América, a diretora regional de Cultura do Alentejo, entre outras personalidades.

No domingo de manhã, apesar da chuva, foi a vez da atividade de voluntariado dedicada à biodiversidade. Sob a direção de Pedro Rocha, diretor regional do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), o grupo de participantes dirigiu-se ao antigo Convento de Nossa Senhora do Loreto, erigido em meados do século XV por dois religiosos espanhóis, à beira do caminho de Santiago.

Hoje, pouco mais restam que duas ou três paredes, a ameaçar ruína, envoltas em urtigas e a servir de curral para cabras.

José António Falcão recordou um pouco da história deste convento franciscano, construído num local que «garantisse o contacto com a natureza», com boas águas, terrenos férteis e riqueza natural para garantir a subsistência dos 12 religiosos que aí habitavam.

Mas Nossa Senhora do Loreto, lembrou, chegou a ter uma «biblioteca importante» e a funcionar como uma espécie de escola de altos estudos, sendo, por isso, «um convento de elite dentro do território franciscano».

Situado à beira do caminho de Santiago, que ligava o Sul de Portugal à cidade compostelana, o convento tinha uma portaria para colher os peregrinos. Ainda hoje se situa à beira da Rota Vicentina e do atual caminho de Santiago, recuperado. A provar isso mesmo, quando o grupo ouvia as explicações do guia e enquanto a chuva teimava em cair, um casal de caminhantes, de concha a decorar as mochilas, passou por ali, como muitos outros peregrinos ao longo dos séculos.

Tendo em conta o estado de ruína do Convento de Nossa Senhora do Loreto, nem parece que o monumento e os terrenos à sua volta são propriedade do Estado, com a gestão entregue ao ICNF…

Pedro Rocha, diretor regional do ICNF, revelou que se trata, de facto, de «uma das áreas raras de floresta pública do Estado em Portugal», importante pelo seu património florestal, com particular relevo para o sobreiro.

«É uma paisagem relíquia com sobreiros que têm centenas de anos, mas padecem de um problema, que é a necessidade de renovação». E foi isso mesmo que o grupo, onde se contava a encarregada de negócios (com funções de embaixadora) dos EUA em Portugal, a sua filha de tenra idade e o marido, se dedicou a fazer: plantar sobreiros.

E porque não basta plantá-los, há que depois tratá-los e garantir que sobrevivem, nomeadamente regando-os, cada família, incluindo a da embaixadora Herro Mustafa, ficou responsável pelo futuro de cada sobreiro novo.

E todos deram um nome às suas árvores. Herro Mustafa que, embora hoje seja diplomata dos Estados Unidos, é uma antiga refugiada curda nascida no Iraque, escolheu a palavra «Compassion» (compaixão, em português) para o seu sobreiro. «Precisamos de compaixão entre os povos», disse a embaixadora.

«Gaia», «Rita», «Compostela», «Safira e o Futuro», «Itália», Trigo», «Liberdade», «Conventual», «Teresa», «Esperança», «São Francisco Xavier», «Pipa», são alguns dos outros nomes escolhidos pelos participantes na atividade.

Mesmo o professor Fernando Pádua, apesar dos seus quase 90 anos, ajudou a plantar um sobreiro, a que chamou «Saúde para Todos». «Tenho um grande orgulho nestas árvores que ficam aqui», disse José António Falcão.

Só para os convidados, alguns deles ensopados e enlameados, seguiu-se depois um almoço na Herdade do Cebolal, da família Mota Capitão, famosa pelos seus vinhos.

Isabel Mota Capitão, a anfitriã, recordou que a herdade já passou por «cinco gerações de produtores de vinho». Atualmente, o responsável é o seu filho, o jovem Luís Mota Capitão, que também falou com paixão do trabalho que ali é feito.

A herdade tem 20 hectares de vinha, dividida entre castas de branco e de tinto, e produz anualmente 80 mil garrafas de brancos, tintos e rosés. A produção limite, a atingir com os investimentos que têm estado a ser feitos, há-de ser de 100 a 110 mil garrafas.

A anfitriã salientou que «toda a produção é orgânica», numa aposta no «respeito pelo património vivo que vamos deixar aos meus netos».

Grande parte da produção de vinho da Herdade do Cebolal é vendida em Portugal, com 20% a ser exportada para países como a Alemanha ou até os Estados Unidos.

Explicando a razão de o Terras sem Sombra vir a esta adega, José António Falcão explicou que «uma das vocações do festival é mostrar o verdadeiro Alentejo, moderno mas muito ligado às suas raízes».

E a Herdade do Cebolal está de facto muito ligada ao Terras sem Sombra, de tal modo que, em breve, vai lançar 3000 garrafas de um vinho especial chamado «Zeda», dedicado precisamente ao maestro italiano Alberto Zeda, recentemente falecido. O maestro, que, aos 89 anos, era o mais antigo em atividade no mundo, foi um dos convidados da edição do festival em 2016 e foi almoçar à herdade. A conversa foi tão boa que o enólogo Luís Mota Capitão lhe perguntou se podia fazer um vinho para o homenagear, ao que o músico acedeu, com alegria.

O maestro Alberto Zeda «teve a oportunidade de provar o vinho antes de morrer», mas infelizmente já não assistirá ao seu lançamento. No entanto, como sublinhou o jovem enólogo, «foi para o céu mais reconfortado».

Depois de todas estas histórias, certamente o leitor já se convenceu que o Festival Terras sem Sombra é, de facto, uma iniciativa diferente, com caráter muito próprio.

Serpa será, no sábado, dia 6 de Maio, a próxima localidade do Baixo Alentejo a receber o Terras sem Sombra, após Almodôvar, Odemira, Santiago do Cacém e Castro Verde. Uma porta aberta para conhecer a margem esquerda do Guadiana, que só se integrou definitivamente em Portugal no tempo de D. Dinis.

O festival defende um programa de excelência na área da música sacra e tomou a peito desvelar as histórias de palácios, igrejas e outros monumentos das povoações, estabelecendo pontes entre o património imaterial e material.

A realização de ações de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade é outra das suas marcas.

Todos os concertos decorrem em igrejas recuperadas ao longo dos últimos anos, mas Serpa constituirá a exceção: o espetáculo terá lugar na praça principal da cidade, no dia 6, às 21h30.

A tarde de sábado é consagrada a uma visita ao centro histórico de Serpa, que se inicia às 14h30, junto à Câmara Municipal, e terá por fulcro o palácio dos Marqueses de Ficalho.

À noite, a praça principal de Serpa, a curta distância da antiga Porta de Sevilha, acolhe o concerto. O flamenco na sua dimensão pura chega ao Alentejo por uma das mais belas e expressivas vozes da actualidade, a da cantaora Esperanza Fernández, acompanhada pelo grande guitarrista Miguel Ángel Cortés e, na percussão, por outras referências da música andaluza: Jorge Pérez «El Cubano», Dani Bonilla e Miguel Junior.

Temas profundamente religiosos, como o Agnus Dei, o Kyrie ou o Cordero de Dios, vertidos na liturgia popular em ritmos de soleá, petenera ou siguriya, alternam com outros inspirados por José Saramago, a quem a cantaora sevilhana do bairro de Triana dedicou um disco, intitulado Mi voz en tu palabra.

Na manhã de domingo, com partida de Serpa às 10h00, a Serra de Ficalho será o alvo de uma ação de salvaguarda da biodiversidade que tem por centro o olival tradicional.

Partindo de Vila Verde de Ficalho, será realizado um percurso de descoberta do território raiano nas componentes geológicas, biológicas e da sua riquíssima tradição olivícola.

Todas estas atividades – visita cultural, concerto e iniciativa de voluntariado pela biodiversidade – são gratuitas e não necessitam de inscrição.

Esperanza Fernández
sulinformacao

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