O Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé condenou os proprietários da Quinta da Rocha, na Ria de Alvor, à reposição completa dos habitats que tinham destruído, numa decisão que as seis Organizações não-Governamentais de Ambiente (ONGA) que fizeram a denúncia consideram «histórica para o direito ambiental português».
A sentença, datada de 25 de maio, obriga os proprietários – a empresa Butwell Trading, Serviços e Investimentos SA, pertencente a Aprígio Santos – a restaurar todas as espécies e habitats destruídos, reestabelecendo assim todas as condições que anteriormente justificaram o elevado estatuto de proteção ambiental nesta propriedade situada no coração da Ria de Alvor.
A sentença obriga ainda os proprietários à interdição completa de atividades nas zonas de habitats protegidos durante 10 anos (dando assim aos sapais condições para recuperarem) e à apresentação ao ICNB e execução de um plano de recuperação das espécies protegidas destruídas na propriedade.
Segundo o Grupo de Acompanhamento da Ria de Alvor – constituído pelas associações A Rocha, Almargem, Geota, LPN, Quercus e SPEA -, «depois de anos de denúncias, autos de notícia e contraordenações pela destruição de espécies e habitats com os mais altos graus de proteção ambiental (nacionais e comunitários) nesta propriedade, o tribunal veio finalmente dar como provados todos os factos que vinham sendo denunciados pelas ONGA e por habitantes locais».
Marcial Felgueiras, dirigente da associação A Rocha no Algarve, e que testemunhou em primeira mão as destruições que, em 2006, foram feitas, sobretudo em áreas de sapal, na Quinta da Rocha, sublinhou em declarações ao Sul Informação que esta é «a primeira condenação feita em Portugal, depois de mais de 30 anos de existência da lei ambiental».
«Consideramos que o facto de o tribunal decretar a obrigação de repor a situação original nas áreas destruídas é muito mais eficaz que a aplicação de qualquer multa, que é facilmente contabilizável e absorvível no orçamento do projeto», acrescentou Marcial Felgueiras.
As seis ONGA salientam que «este era um caso que ameaçava acabar como quase todos os outros casos de destruição de zonas protegidas no Algarve e no resto do país. Com o facto (a destruição dos habitats) consumado, fica quase sempre aberto o caminho para, após o pagamento de pequenas multas, serem feitos negócios milionários com terrenos que foram comprados muito baratos, precisamente porque não podiam ser urbanizados».
No entanto, «existe um antídoto eficaz contra estas práticas e esse antídoto foi agora finalmente aplicado pela justiça, obrigando os proprietários a restaurar todas as espécies e habitats destruídos».
Segundo o Grupo de Acompanhamento, «o facto de um tribunal administrativo condenar um particular obrigando-o a medidas concretas de reposição ambiental em favor do interesse público constitui um avanço considerável e poderá vir a ter um impacte muito significativo no direito ambiental português».
«Este tipo de sentença, que, embora prevista na lei, raramente é aplicada, é a única forma de inverter e combater a política do facto consumado, pois obriga à reposição efetiva dos interesses públicos que foram lesados».
Alexandra Cunha, presidente da direção nacional da Liga para a Proteção da Natureza (LPN), manifestou também o seu contentamento com esta «decisão justa, que mostra que vale a pena lutar, usando os instrumentos que a justiça nos confere».
A dirigente da LPN só lamentou que «a justiça seja tão lenta em Portugal», sublinhando que o caso deu entrada nos tribunais em 2007, para só agora, cinco anos depois, conhecer a primeira decisão judicial. «Mas mais vale tarde do que nunca», frisou Alexandra Cunha.
O Grupo de Acompanhamento da Ria de Alvor salienta também, como «aspeto notável», «a colaboração e sinergia de várias ONGA», autoras deste processo, com cientistas de várias Universidades e entidades da Administração Pública (com particular destaque para o ICNB e a CCDR-Algarve), e o SEPNA da GNR, «que se dispuseram não só a testemunhar as destruições, mas também a apontar o caminho e os métodos para a restituição dos habitats destruídos».
No caso das universidades, Marcial Felgueiras destaca as do Algarve, de Coimbra, dos Açores, bem como o Jardim Botânico de Lisboa e até a Universidade de Cambridge, na Inglaterra. «Todas estas academias se disponibilizaram para colaborar, não só testemunhando, como fornecendo material, dos seus arquivos ou herbários, que constituiu prova neste caso».
Considerando este processo como «uma repetição da história de David contra Golias», o Grupo de Acompanhamento considera que «a Ria de Alvor é desta vez um caso de esperança, que anima o resto do país a lutar por um direito do ambiente mais verdadeiro e eficaz, com a proteção real do que todos concordaram que era demasiado valioso para ser destruído».
«Isto foi mesmo um verdadeiro caso de David contra Golias: é que não se pode comparar alguém que tem 15 milhões para investir na compra de uma propriedade como a Quinta da Rocha, com as seis organizações que têm orçamentos pequenos e que todos os dias lutam para conseguir fazer muito com o pouco dinheiro e recursos, até humanos, de que dispõem», sublinhou Marcial Felgueiras. «Felizmente, mais uma vez o pequeno David conseguiu dar a volta à situação».
As ONGA consideram que agora, «durante os próximos dez anos, a Ria de Alvor vai ter uma oportunidade de encontrar outros modelos de desenvolvimento económico, cujo legado não seja apenas betão e lucro fácil, mas também vida para as populações locais numa economia regional verdadeiramente sustentável».
Marcial Felgueiras sublinha que a sentença «foi não tanto uma vitória das ONGA, mas sobretudo da população, que deve ser celebrada por todos, já que assim se conseguiu a preservação de uma riqueza ambiental que pode ser usufruto de todos».
Quanto ao plano de recuperação a que os proprietários ficam obrigados, e que deverá ser apresentado no prazo de seis meses ao ICNB, à CCDRA e à Câmara de Portimão (prazo que será interrompido se os proprietários, como se espera, interpuserem recurso), o dirigente da associação A Rocha salientou que «quando elaborámos a ação, tivemos o cuidado de dizer que esta reparação devia ser feita o mais barato possível, sem necessidade de grandes investimentos». É que, explicou, «com pequenas intervenções quase cirúrgicas, o sapal irá recuperar naturalmente, porque a natureza tem grande resiliência».
No fim de tudo, assegura Marcial Felgueiras, «até o proprietário poderá sair a ganhar com isto, já que conseguirá um retorno mais prolongado do seu investimento, se souber tirar partido, de forma sustentável, da grande riqueza ambiental que é aquela propriedade».
Alexandra Cunha, presidente da LPN, sublinha, a terminar, que «há agora que definir quem é que vai fiscalizar e monitorizar no terreno o que for feito pela empresa para repor a situação anterior». Mas até que se chegue a essa fase, e tendo em conta o mais que provável recurso, ainda passará muito tempo…
Aprígio Santos já condenado a 2 anos e multa de 150 mil euros
Num outro processo referente à mesma destruição de habitats naturais na Ria de Alvor, o empresário Aprígio Santos tinha sido condenado, em fevereiro passado, a dois anos de prisão, com pena suspensa, por crime de dano contra a natureza e pela prática de crimes de desobediência na Ria de Alvor, em sentença proferida pelo Tribunal Criminal de Portimão.
O empresário, enquanto administrador da empresa Butwell Trading, Serviços e Investimentos SA, proprietária da Quinta da Rocha, no coração da Ria de Alvor, foi ainda condenado ao pagamento de uma multa, a pagar em seis meses, de 150 mil euros, que deverá reverter a favor da Almargem – Associação de Defesa do Património Cultural e Ambiental do Algarve.
A Butwell recorreu desta condenação, assim como, previsivelmente, irá fazer em relação à sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.
Caso remonta a 2006
O caso remonta a 2006, quando a 13 de março, a Associação A Rocha, que tem sede na Ria de Alvor, fez a primeira denúncia às autoridades sobre a destruição, por parte de máquinas ao serviço da Butwell, de vastas áreas de sapal e de outro coberto vegetal na Quinta da Rocha, zonas sob a alçada da Rede Natura pela importância dos seus habitats.
Apesar das denúncias, que se sucederam, e da instauração de pelo menos nove processos de contra-ordenação por parte da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, os proprietários da Quinta da Rocha continuaram a fazer trabalhos de lavra, gradagem e arranque de vegetação, alterando vastas áreas da propriedade.
Uma dessas lavras até estava a ser feita ao fim da tarde de um dia de novembro de 2007 quando dirigentes da Associação A Rocha e da Liga para a Proteção da Natureza faziam uma visita ao local, acompanhados por altos responsáveis do Instituto de Conservação da Natureza – o diretor do Departamento de Gestão das Áreas Classificadas do Sul João Alves e pela diretora do Departamento de Áreas Classificadas das Zonas Húmidas Maria João Burnay -, que logo ali testemunharam os trabalhos ilegais em curso.
Leia aqui, na íntegra, a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.