Palmira Hendricks, de 77 anos, e Ana Calvinho, de 71 anos, ainda têm de andar de óculos escuros quando saem de casa, mesmo que não esteja muito sol. É que elas são duas das mais recentes idosas do concelho de Vila Real de Santo António a fazer uma cirurgia às cataratas, no âmbito do Programa «Cuidar», e proteger os olhos do excesso de luz é uma precaução dos primeiros dias após a intervenção.
Palmira Hendricks é uma cozinheira de mão cheia, sendo famosa a sua moamba de galinha e o caril de camarão. Mas, nos últimos anos, devido às cataratas, não conseguia já ver o suficiente para poder cozinhar à vontade e precisava de recorrer à ajuda do filho, que com ela vive na casa no sítio da Cevadeira, freguesia de Vila Nova de Cacela.
«Já só conseguia fazer a minha vida com muita dificuldade. Ficava aqui sentada [no sofá] e as lágrimas corriam-me cara abaixo», recorda a Dona Palmira, à reportagem do Sul Informação.
Palmira Hendricks é um daqueles casos de pessoas que, precisando de intervenções oftalmológicas, estiveram anos e anos, no caso dela quatro anos, à espera de serem chamados pelo Serviço Nacional de Saúde.
«A primeira vez que fui ao médico por causa do olhos foi há 15 anos, mas foi uma consulta particular. Depois, há quatro anos estava a sentir-me pior, cada vez pior, e fui ao Centro de Saúde que me disse que tinha que ir a uma consulta ao Hospital de Faro. Há quatro anos que estava à espera dessa consulta e nada», contou.
Através do Programa «Cuidar», a Dona Palmira foi a uma consulta em Vila Real de Santo António em Setembro do ano passado e, no dia 20 de Janeiro, foi submetida à intervenção cirúrgica. «Fui operada precisamente no dia em que tinha marcada a primeira consulta no Hospital de Faro. Aí estava à espera há quatro anos e só ia à consulta. Aqui esperei quatro meses e fui logo operada», contou.
«Ser aqui perto facilitou-me muito», acrescentou, fazendo questão de salientar como foi «muito bem tratada, muito bem acompanhada» em todo o processo, pela equipa da Câmara de VRSA, pelo próprio presidente da autarquia («nunca esperei que, sem me conhecer, ele fizesse isto por mim»), pelo médico e pela sua equipa.
Ana Calvinho, de 71 anos, antiga operária conserveira, vive em Monte Gordo, e conta uma história semelhante. «Há três anos fui ao meu médico de família, no Centro de Saúde, ele enviou-me para uma consulta no Hospital de Faro, mas nunca mais me disseram nada. Esperei e esperei e uma vizinha disse-me: “estás com a vista assim, porque é que não vais à Câmara?”». E ela foi.
«No olho esquerdo já não via quase nada, já tinha uma catarata muito rija, até me disse o médico que agora me operou. Custava-me a cozer, a cozinhar. Muitas vezes cozinhava, mas depois tinha de perguntar ao meu marido: vê lá se está tudo bem».
A Dona Ana Calvinho também tinha «muita dificuldade» em ver televisão. «Às vezes tinha de fazer assim» e pisca o olho esquerdo, para mostrar.
Através do Programa «Cuidar», depois de uma consulta em Outubro, a idosa acabou também por ser operada em meados de Janeiro. E agora, diz, orgulhosa ao receber a reportagem do Sul Informação na sua sala, «já vejo tudo muito bem, muito nítido, já nem tenho medo de ir à rua».
Mas não foi apenas o seu olho esquerdo que passou a ver bem. «Também tenho um problema de tiróide e também me resolveram, com esse programa da Câmara. Já fui a Lisboa a uma consulta no especialista e estou a tomar os medicamentos».
Ana Calvinho não esconde como se sente grata pela ajuda recebida, através do Programa «Cuidar»…e pela ação do presidente da Câmara, que até tem visitado pessoalmente os doentes. «Abençoada a hora em que o presidente olhou pelos pobres. Se não fosse isto, estávamos todos cegos, jogados a um canto».
Em entrevista ao Sul Informação, o presidente da Câmara de Vila Real de Santo António, o social-democrata Luís Gomes, recorda que o Programa «Cuidar» foi criado, em conjunto, pela sua autarquia e pela de Olhão, cujo presidente António Miguel Pina até é do PS.
E porquê avançar em conjunto com Olhão? «Tem muito a ver com as relações pessoais, conheço o presidente da Câmara de Olhão há muito tempo, partilhamos as mesmas preocupações em muita coisa», explica Luís Gomes.
O autarca vilarrealense faz questão de sublinhar que este programa que une Câmaras Municipais de cores políticas diferentes é «um sinal para o país e para a região», indicando que «há coisas em que as bandeiras político-partidárias devem estar escondidas».
«Preocupação pelas pessoas temos todos nós, independentemente das cores políticas que defendemos, não se pode ser do PSD, do PS ou do PCP como se é do Benfica ou do Sporting, não é uma cegueira clubística. O que une os autarcas são causas, que são transversais às questões partidárias. Tínhamos uma causa comum, que era tratar estas pessoas».
O objetivo, explicou Luís Gomes, foi «criar economias de escala», já que, «se dermos alguma escala, o esforço é muito reduzido, repartindo custos. Este é um excelente exemplo do que o Estado já podia ter feito há muito tempo, salvaguardando recursos, criando consensos e vontades por parte das autarquias e resolvendo o problema das populações».
E, no futuro, o programa poderá ser alargado a outros municípios? «Temos mais 4 ou 5 municípios que querem aderir, mas não posso ainda divulgar. Mas em breve vão aderir outros», admitiu.
Para já, são então apenas os municípios de Vila Real de Santo António e Olhão a integrar o programa. Para lhe dar corpo, contrataram o oftalmologista António Gaspar e celebraram um outro contrato com o Hospital de Gambelas, do grupo Hospital Particular do Algarve (HPA Saúde), para utilização de um bloco operatório.
Em VRSA, as consultas decorrem na clínica do HPA Saúde ali existente. Já em Olhão, têm lugar num espaço do Centro de Saúde local, após um acordo entre a autarquia e a Administração Regional de Saúde do Algarve.
E é assim, que, em três meses, desde que o programa entrou em velocidade de cruzeiro em Setembro do ano passado, garantiram o acesso de utentes carenciados a milhares de consultas especializadas e a dezenas de cirurgias.
«Em três meses já demos mais de 1000 consultas em cada um dos dois municípios» de VRSA e Olhão, recorda, com orgulho, o autarca Luís Gomes.
Assim, em Vila Real foram já realizadas 1171 consultas e, até ao fim do mês de Fevereiro, meia centena de cirurgias. Em Olhão, foram 1045 consultas e 32 cirurgias, no mesmo período. Neste segundo concelho, estão já sinalizadas, até ao momento, mais cerca de 70 intervenções cirúrgicas às cataratas.
O maior número de consultas tem sido feito por pessoas a partir dos 55 anos, em ambos os municípios, embora essa tendência seja ainda mais acentuada em VRSA, onde os utentes de mais idade representam 59% do total, contra 54,9% em Olhão.
António Miguel Pina, presidente da Câmara de Olhão, defende que as 2216 consultas já feitas nos dois concelhos e as mais de 80 cirurgias «revelam a fraca qualidade da saúde que existe no Algarve. Espero que o ministro da Saúde o reconheça e que ajude os olhanenses e os algarvios. Porque a estas pessoas, sem posses e sem saúde, só resta mesmo o apoio de proximidade das autarquias».
Luís Gomes, por seu lado, salienta a sua já longa luta contra os deficientes serviços de oftalmologia no Algarve, recordando que os antecedentes deste programa começaram com «as 300 pessoas que levámos a Cuba desde 2007, devido a termos verificado, o que era público, que o prazo médio para uma consulta no SNS era de 4 anos e para uma operação era de 6 a 8 anos».
Mesmo hoje, sublinha, «o Centro Hospitalar do Algarve não tem quase oftalmologistas suficientes para darem cobertura às necessidades das pessoas», por isso «criámos este programa para democratizar este acesso à oftalmologia, que significa o acesso à visão», porque a «oftalmologia é uma especialidade privada em Portugal» e «hoje há mais pessoas que não têm meios para ir a uma consulta de oftalmologia privada, por força da crise económica».
Mas o programa não se fica apenas pelas consultas, também avança para a terapia. «O que aparece mais são as cirurgias às cataratas, mas também temos feito bastante na prevenção de algumas patologias oftalmológicas. Como as pessoas não têm dinheiro para pagar do seu bolso uma consulta, se não fosse este projeto havia muitas que nem chegavam a saber das suas doenças até ser demasiado tarde», diz Luís Gomes.
Em que casos? «Por exemplo, o glaucoma. Há uma percentagem grande de pacientes que têm um conjunto de patologias, como o glaucoma, que pode provocar a cegueira, mas, como não havia rastreios, muito menos consultas, as pessoas iam cegando sem saber porquê».
Através deste programa, «temos um tratamento personalizado, que visa pôr o ser humano em primeiro lugar». Um programa em que os municípios, «mesmo sem terem capacidade financeira, têm que substituir as funções que são do Estado». E os utentes agradecem.