Já alguma vez pensou se a criança que vê a pedir na rua ou a rapariga que se prostitui à beira da estrada o fazem porque a isso são obrigadas? Ou se a fruta ou legumes que consome foram apanhados por um trabalhador devidamente pago e livre e não por um escravo? O tráfico de seres humanos é um flagelo real e atual e dos ilícitos mais rentáveis, a seguir ao tráfico de drogas e de armas. No Algarve, há quem trabalhe todos os dias para o combater.
As diferentes forças policiais têm secções dedicadas a este crime, mas a sociedade civil também assume a sua responsabilidade. A Associação de Proteção à Rapariga e à Família (Aipar) trabalha de perto com a Polícia Judiciária, PSP, GNR e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e ajuda a encontrar soluções de vida para os que as autoridades vão conseguindo libertar das teias da escravatura moderna.
Esta associação, a GNR, a PSP e a PJ estiveram representadas no programa radiofónico «Impressões», dinamizado em conjunto pelo Sul Informação e pela Rádio Universitária do Algarve RUA FM, para dar a conhecer melhor esta realidade que, quase sempre, nos passa ao lado. Mas, como se pôde perceber nesta conversa, até podemos deparar-nos com ela diariamente.
A entrevista foi realizada no âmbito da iniciativa «Mentalidades», na qual a IPSS farense está envolvida, que pretende «promover a igualdade de género, o combate à violência de género e ao tráfico de seres humanos», segundo a técnica da Aipar Cristel Domingos. E um dos pontos fulcrais deste projeto é a consciencialização da população para estes problemas.
«Ao contrário do que as pessoas possam pensar, este fenómeno existe a nível internacional e nacional e é um negócio que envolve grandes quantias monetárias, assemelhando-se, inclusivamente ao tráfico de droga. As cifras negras, ou seja, os casos não identificados, são bastante elevadas. Em Portugal, temos tido vários processos de tráfico de pessoas», enquadrou o Inspetor Luís Rocha do Núcleo de Apoio à Direção da Diretoria do Sul da PJ.
Este crime está muito associado à prostituição, mas este está longe de ser o único destino das vítimas, que são das mais variadas faixas etárias e de ambos os géneros. Os seres humanos traficados podem ser explorados de outras formas, sendo comum a sua utilização como mão-de-obra escrava, para redes organizadas de pedintes e até para levar a cabo furtos, no caso dos menores.
Há casos de tráfico feito dentro das fronteiras de Portugal, mas a maioria está associada à imigração ilegal, nomeadamente de «países do Leste Europeu».
«Aqui na região do Algarve, e na nossa área de influência, que vai quase até Portel, têm sido identificados muitos casos, mais no âmbito da exploração laboral. Temos procedido a detenções e libertação das pessoas traficadas», revelou o inspetor da PJ. «Aqui no Algarve, em 2012 tivemos 5 processos de tráfico de Seres Humanos em 2012 e quatro em 2013. Muitas vezes, mistura-se o conceito de tráfico com burla no trabalho, mas as investigações que fazemos permite distinguir entre os dois crimes. Atualmente, está a decorrer um julgamento com traficantes detidos», ilustrou Luís Rocha.
Cifras negras são o grande problema
«Uma coisa é o que existe, outra é aquilo de que nós temos conhecimento», disse Luís Rocha. As cifras negras são um problema que as autoridades não resolvem com facilidade, mas que podem baixar com uma maior vigilância de todos.
«Todo o medo inerente à divulgação e denúncia deste tipo de crimes gera esta diferença entre os números», reforça o comissário Hugo Marado da PSP de Faro. Ou seja, muitas vezes, «aparentemente, não se passa nada», algo que tem acontecido muito no Algarve.
Mas, a verdade, é que qualquer pessoa pode iniciar um processo de investigação, com um simples aviso às autoridades. «Basta que a informação chegue, da forma que o cidadão entender, até com reserva de identidade», dizem as autoridades policiais.
«O crime é de procedimento público, qualquer pessoa o pode denunciar e basta que haja uma informação para que se inicie a investigação. Mas, o que acontece com frequência, é que há denúncias de outro tipo, que à partida não indiciam que haja tráfico de seres humanos», mas que acabam por estar relacionadas, revelou, por seu lado, o Capitão de Cavalaria Paulo Santos do Comando Territorial de Faro da GNR.
«Há que incentivar a denúncia, a informação e a perspicácia das pessoas para estar atentas ao fenómeno e a todos os aspetos que sejam indiciadores de que possa estar a ocorrer este tipo de crime, para que alguém possa investigar», disse o capitão da GNR.
A pobreza extrema, nomeadamente quando se tratam de pessoas que têm trabalho, a prostituição e o acto de pedir esmola são algumas das situações que devem levar o cidadão comum a interessar-se pelo caso da pessoa e tentar perceber o que se passa realmente. «No nosso quotidiano tentamos aproximar-nos de instituições ou associações que possam representar pequenos grupos e sirvam de elo de ligação e comunicação conosco», acrescentou Hugo Marado.
Luís Rocha lembra uma situação em que havia 15 pessoas a ser escravizadas no Alentejo e que viviam em condições deploráveis numa pequena aldeia, «e ninguém denunciou». «As pessoas iam buscar comida aos caixotes de lixo, porque não tinham dinheiro», lembrou e foi através da GNR.
«O perfil das pessoas que caem nestas redes são aquelas que têm dificuldade em dizer não. Depois, há o fator solidão. O acto de cortar redes, de cortar contactos. E essa solidão leva a que, de facto, o único contacto seja o agressor e aquele ambiente, que acaba por ser normal», segundo a presidente da Aipar Filomena Rosa.