«Estás a ver? Esta sou eu, na praia, com a Margarida e a minha irmã», comentava Estela Avelar perante a fotografia a preto e branco que mostra três meninas com fatos de banho de modelos antigos, à moda dos distantes anos 30 do século passado.
Esta é apenas uma das fotografias da exposição «José Tengarrinha: a outra face da moeda», que abriu na terça-feira, véspera do feriado municipal, no Museu de Portimão. A exposição, dividida em três partes, mostra outras tantas facetas de José Mendes Tengarrinha Júnior, um homem que, além de gerente da delegação do Banco de Portugal em Portimão e membro proeminente da burguesia endinheirada e bem relacionada da cidade recente, foi também fotógrafo e pintor de talento.
Estas suas facetas artísticas menos conhecidas tiveram reflexos nos seus dois filhos: Margarida Tengarrinha, pintora, antiga deputada do PCP, que viveu anos na clandestinidade durante o regime salazarista, cortando assim com as suas origens de menina de família, e José Manuel Tengarrinha, historiador, escritor, igualmente antigo deputado, também ele tendo trilhado os caminhos da política e da esquerda, mas como fundador do MDP/CDE.
«Ambos os filhos foram muito influenciados por este pai ligado às artes. Havia toda uma vida cultural que rodeava a família. O José Manuel recorda a biblioteca do seu pai, onde leu Tolstoi, Dostoievsky, Gogol», salienta José Gameiro, diretor do Museu de Portimão.
A ideia desta exposição, que recorda uma figura importante da vida portimonense, mas, no fundo, também traz à memória a época mais dourada da então nova cidade de Portimão, é de Margarida Tengarrinha, que assim quis homenagear o seu pai, a quem tanto fez sofrer quando, já estudante de Belas Artes em Lisboa, escolheu o Partido Comunista e uma vida, difícil, de clandestinidade.
«Com esta exposição, realiza-se uma ambição que vem de muitos anos atrás, quando tive de abandonar casa e família para seguir outros caminhos, o da luta clandestina contra um inimigo cruel. Mas não enveredei por esse caminho sem que isso me causasse profundos remorsos pelo que fiz sofrer os meus entes queridos mais próximos, em especial os meus pais», explica Margarida Tengarrinha, hoje com 83 anos, comovida, em entrevista ao Sul Informação.
Por isso, acrescenta, «incentivar e promover a realização desta exposição foi para mim um imperativo que germinou durante sessenta anos, sempre na esperança que um dia se realizasse e que, de uma forma ou de outra, significasse um reencontro com o meu pai».
O mundo fantástico das imagens
Mais do que o seu irmão, mais novo, a grande companheira do pai era Margarida. «A primeira opção artística do meu pai foi a fotografia. Numa despensa que tínhamos na casa por cima do Banco de Portugal, ele fez um laboratório para revelação. Eu adorava, porque era miudita, quando ele me dava autorização para entrar. Ver, no fundo das cuvetes, começar a sair a imagem, era para mim algo de fantástico! De repente, ver a imagem começar a surgir, depois a ficar mais nítida, a luz vermelha daquele laboratório…era mágico. E eu ficava ali, com o nariz em cima de tudo aquilo. Ficava toda orgulhosa, quando ele me dava as molas para pendurar as fotos a secar, o que nem sempre acontecia. Foi assim que a imagem das coisas se me tornou tão importante a sua manipulação como um ritual», recorda.
«Depois, na fase em que o meu pai fazia aguarela, eu acompanhava-o. Eu lia uns jornais de banda desenhada que ia comprar ali à Casa Inglesa, o «Mosquito», o «Senhor Doutor», e copiava os bonecos. Longe de ficar contente com isso, o meu pai dizia-me: a menina não copia esses bonecos. Vem comigo para a praia, traz as aguarelas e copia uma rochinha ou uma pocinha de água, que estão ali à frente. Isto mostra o espírito naturalista dele», comenta Margarida.
Mas mostra também, segundo José Gameiro, o seu interesse em «incutir na filha o gosto pela criatividade e não pela cópia». E foi ele que, por volta de 1948/49, mesmo contra a oposição da mãe, autorizou e incentivou a ida da filha para o curso de Belas Artes, em Lisboa. «A minha mãe opunha-se terminantemente, mas o pai disse: vai mesmo!».
Ainda antes dessa escolha, Margarida acompanhava o pai nas suas viagens de carro, pelo Algarve fora, acompanhado do pintor Samora Barros, ou de outros artistas plásticos como Falcão Trigoso, Jaime Murteira e tantos outros. «Faziam excursões pelas praias e pelos campos, sempre de cavalete atrás, sempre falando de temas ligados às artes que me interessavam».
As fotografias desses passeios, mas sobretudo os quadros de paisagens marinhas e campestres resultantes dessas incursões sobretudo pelo Barlavento algarvio, estão agora patentes na exposição no Museu de Portimão.
Fotografias inéditas, pinturas pouco conhecidas
Os quadros, pertencentes aos dois filhos e a amigos da família, eram já mais ou menos conhecidos, pelo menos do círculo restrito. Mas as fotografias a preto e branco são, em muitos casos, «absolutamente inéditas». «São fotografias ligadas sobretudo à história da família, mas que retratam Portimão e o Barlavento Algarvio nesses distantes anos 30, 40, 50», explica o diretor do Museu. «Parte destas fotografias nunca tinham saído dos negativos, alguns dos quais nos chegaram muito deteriorados, exigindo muito trabalho de laboratório, mas são um espólio muito, muito interessante», acrescenta José Gameiro.
A mostra, concebida pela equipa do Museu, a quem Margarida Tengarrinha, na abertura da exposição, fez questão de agradecer o trabalho de alta qualidade, o carinho e o empenho, começa por mostrar José Tengarrinha na sua faceta mais conhecida, a de bancário.
Nascido em Loulé, José Mendes Tengarrinha Júnior veio para Portimão em 1925 como correspondente do Banco de Portugal, assumindo mais tarde o papel de gerente, quando a cidade passa a ter uma agência dessa instituição. «Não era qualquer cidade que recebia uma agência do Banco de Portugal, isso mostra como era florescente a cidade de Portimão, nesses tempos. Havia a indústria das conservas, a pesca, o comércio, o porto, todo esse mundo», frisa José Gameiro.
Mas dois terços da exposição centram-se sobre a vertente artística deste homem, «em geral muito pouco conhecida fora do seu círculo de familiares e amigos».
«A proposta da Margarida de fazer esta exposição sobre as facetas desconhecidas do seu pai foi acarinhada por nós. Enquanto contador de histórias, o Museu não pode ficar indiferente a estes percursos», sublinha o diretor José Gameiro, recordando outras mostras anteriores feitas sobre figuras portimonenses, nomeadamente sobre Manuel Teixeira Gomes e os fotógrafos Júlio Bernardo e António Oliveira.
Na abertura da mostra, no sábado passado, estiveram os dois irmãos José Manuel e Margarida Tengarrinha, bem como as duas filhas desta última, Teresa Dias Coelho e Margarida, ambas artistas, e o filho do historiador. Mas estiveram também muitos amigos da família ou seus descendentes, alguns deles retratados em fotos com sete décadas, o que deu azo a muitos comentários, exclamações, risos e até a algumas lágrimas.
Falta apenas explicar o nome da exposição: «José Tengarrinha: a outra face da moeda». Foi escolhido por Maria do Vale Cartaxo, escritora portimonense e grande amiga de Margarida. «Andávamos às voltas com o título e ela, que é uma artista das palavras, deu esta ideia, que realmente resumo tudo o que o meu pai era e o que queremos mostrar dele», conclui a ex-deputada.
A mostra, cuja inauguração se integrou no programa das Comemorações do Dia da Cidade, pode ser vista até abril do próximo ano.
O Museu de Portimão pode ser visitado às terças-feiras das 14h30 às 18h00 e entre quartas-feiras e domingos das 10h00 às 18h00, encerrando às segundas-feiras.
Fotos de: Elisabete Rodrigues e Filipe da Palma/CMP