Em Portimão, enquanto de um lado se afundam navios, noutro eles são trazidos à superfície, depois de terem estado centenas ou mesmo milhares de anos submersos. Uma campanha de arqueologia subaquática terminou no dia 31 de outubro, após cerca de duas semanas de trabalho no estuário do Arade e na zona frente à Ponta do Altar, perto da embocadura daquele rio.
Como resultado mais visível para o grande público desta curta campanha, os investigadores retiraram do fundo do rio, no sítio designado como Arade B, uma ânfora romana «que estava praticamente inteira», e que agora está no Museu de Portimão em dessalinização e conservação, revelou ao Sul Informação o arqueólogo Cristóvão Fonseca, um dos responsáveis pela intervenção.
A campanha de arqueologia subaquática decorreu de 18 a 31 de outubro, no estuário e embocadura do rio Arade. Esta intervenção foi promovida pelo Centro de História de Além-Mar (CHAM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e coordenada pelos arqueólogos Cristóvão Fonseca e José Bettencourt, contando com o apoio «fundamental» do Museu de Portimão, e ainda da Direção-Geral do Património Cultural, Clube Naval de Portimão, Clube Subaquático de Mergulho Portisub, Centro de Mergulho Subnauta, empresa de arqueologia Archeosfera Lda, Capitania do Porto de Portimão e Grupo de Estudos Oceânicos (GEO).
Na zona do leito do Arade, a cerca de seis metros de profundidade, os arqueólogos queriam confirmar se a grande concentração de ânforas detetada em campanhas anteriores correspondia ou não ao naufrágio de uma embarcação romana, há cerca de 2000 anos, ou se se tratava apenas de ânforas jogadas borda fora quando os navios aí fundeavam.
Apesar de não haver ainda uma resposta definitiva, Cristóvão Fonseca diz que «a maior parte desse material anfórico corresponde a uma mesma tipologia, o que dá corpo à hipótese de se tratar de um naufrágio». Ou seja, se fosse um simples local de vazadouro das ânforas vazias – as ânforas foram, há dois milénios, o primeiro contentor destinado a ser usado e deitado fora – haveria vários tipos e não a concentração de um só.
Quanto à origem das ânforas, na sua maioria são da tipologia Dressel 7-11, o que significa que se destinavam a transportar preparados de peixe (como o garum), e vinham da Bética, uma das duas províncias romanas da Península Ibérica, provavelmente do sul da atual Andaluzia, tendo sido produzidas «na primeira metade do século I d.C.)».
«Seriam preparados piscícolas que estavam de passagem, quando o navio que os transportava teve que se abrigar por qualquer razão no estuário do Arade? Teriam como destino final o Algarve? O Arade era um porto de abrigo importante e podia aqui tratar-se de exportação para o Atlântico ou para o Norte da Europa», explicou Cristóvão Fonseca.
Face a este material romano, os arqueólogos gostariam de encontrar mais respostas para as suas muitas perguntas. «Houve vários naufrágios que ocorreram ali? Quantos? Quais».
Mas, como salienta Cristóvão Fonseca, «só com escavações naquele sítio poderemos chegar a níveis mais preservados», que permitam definir melhor o que se passou naquela zona do estuário do Arade, no tempo dos romanos. Para mais porque, na zona onde se encontram as ânforas, «está tudo muito mexido, descontextualizado», após décadas de dragagens no estuário do Arade, milénios de fundeadouro de embarcações e de dinâmica do próprio leito do rio.
Páginas de história para ler
A provar que o fundo do rio não é uma página da história fácil de ler, mais ou menos no mesmo local onde foram localizadas as ânforas romanas, no «sítio Arade B associado ao GEO7», a equipa voltou a localizar vestígios da época moderna (século XVI ou XVII), com madeiras, cerâmicas, cadernais. «Não há dúvida que estamos perante um ou mais naufrágios da época moderna», mas os arqueólogos, em apenas duas difíceis e intensas semanas de trabalho, pouco mais puderam fazer que um levantamento georreferenciado.
Fora do estuário, frente à Ponta do Altar, o cabo onde se situa o farol de Ferragudo, foram «relocalizadas as duas âncoras que serviram de referência às campanhas de levantamento dos canhões», feitas em 1992, pelo arqueólogo subaquático Francisco Alves, do então Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática.
Nos anos 90, foram recuperados canhões que estavam à vista e poderiam ser roubados, numa zona que corresponderia ao provável naufrágio de um navio de guerra, da época em que as coroas de Portugal e Espanha estiveram unidas sob o domínio dos Filipes. Cristóvão Fonseca diz que o navio aí naufragado deverá datar de «inícios do século XVII», mas só mais investigação arqueológica poderá ajudar a confirmar esta datação.
Desta vez, nos poucos dias de trabalho na zona, com a ajuda do equipamento geofísico da empresa Subnauta – uma das várias entidades que colaborou nesta campanha – foi possível «identificar anomalias magnéticas à volta da Ponta do Altar». Em futuras campanhas, que Cristóvão Fonseca espera que possam ter lugar já no próximo ano, os arqueólogos já saberão onde deverão concentrar os seus esforços.
Poucos dias de trabalho com dificuldades acrescidas
Esta campanha dos jovens arqueólogos do CHAM, o Centro de História de Além-Mar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL, além de reduzida a curtas duas semanas, ainda teve que bater-se contra a greve nos portos que atrasou a chegada do material de mergulho proveniente dos Açores, onde os arqueólogos estiveram a trabalhar antes, bem como contra as difíceis condições de visibilidade no estuário do Rio Arade.
É que, devido às primeiras chuvas e às condições meteorológicas, «tínhamos cerca de meio metro a um metro de visibilidade. Havia dias em que nem 10 centímetros de visibilidade tínhamos. Isso condicionou um pouco uma leitura global do sítio» e dificultou o trabalho dos arqueólogos subaquáticos e dos restantes membros da equipa.
Mas o trabalho não se faz apenas debaixo de água. O Museu de Portimão tem um espólio imenso ligado à arqueologia subaquática e aos achados que foram sendo feitos ao longo dos anos no estuário do Arade. «É preciso pegar nesse espólio e no trabalho de arqueologia subaquática que foi feito [nomeadamente nos anos de 2004 e 2005], mas que foi interrompido, e cruzar esses dados. Não foi tudo investigado, nem sistematizado. Há pontos quentes que precisam de ser abordados», garante Cristóvão Fonseca.
No Inverno, quando as condições não permitem o trabalho subaquático, os investigadores irão agora dedicar-se a «sistematizar, pegar na informação disponível, relacioná-la, localizar tudo muito bem, elaborar plantas e definir onde se deve trabalhar em futuras campanhas».
Cristóvão Fonseca faz questão de salientar as excelentes condições que o Museu de Portimão tem para a arqueologia subaquática (aliás, ele próprio já lá trabalhou nessa área específica), condições não só logísticas, como humanas.
E sublinha que todas as colaborações são bem vindas: «é preciso juntar toda a gente, porque todos os esforços são poucos, sobretudo numa época como agora, em que há escassez de financiamentos. A ideia, para já, é continuar o projeto com base no trabalho voluntário de todos nós».
Mas isso, avisa o arqueólogo, só é possível numa fase de levantamento. «Se passarmos para a fase de escavação, teremos de ter outros meios e mais tempo. Não é com 15 dias de trabalho que poderemos fazer seja o que for aqui».
Para já, no próximo Verão, a equipa do CHAM pretende voltar a Portimão. «Aí esperamos ter já condições para fazer sondagens».
Investigar e valorizar o património subaquático
Cristóvão Fonseca explica que o estuário do Arade tem uma grande dinâmica de fundos, pelo que «de ano para ano, de cinco em cinco anos, volta a expor material. E é preciso acompanhar essa dinâmica».
Além da investigação científica pura e dura, os trabalhos têm ainda objetivos mais pragmáticos: «objetivo é também proteger os sítios, conhecê-los melhor para poder protegê-los».
É que, insiste Cristóvão Fonseca, «o estuário do Arade é um sítio em risco, uma zona de fundeadouro de embarcações, onde os materiais arqueológicos estão em permanente risco». Daí que, numa «perspetiva de arqueologia preventiva», os trabalhos até tenham sido direcionados para «zonas onde existe maior risco de destruição».
No futuro, sublinha o arqueólogo, «é preciso congregar esforços e envolver no projeto gente com know-how e com os equipamentos necessários. É com este tipo de projetos que se pode atrair mais riqueza para a zona. Também aqui o turismo de mergulho é uma mais valia a não esquecer».
«Já falámos com a Subnauta sobre a possibilidade de fazer aqui uma field school, articulando com universidades, portuguesas e estrangeiras, que queiram participar». Seria, no fundo, uma forma de atrair mais voluntários para trabalhar na zona – nomeadamente estudantes de arqueologia – e também de criar uma fonte de receitas e de atrair os financiamentos de que os investigadores precisam como de pão para a boca.
Em termos de investigação futura, os planos do CHAM passam por «trabalhar não só o Rio Arade, mas toda a frente costeira. Há vestígios e achados já referenciados que convém terem abordagem arqueológica».
Para já, enquanto a chuva, o frio, as correntes e as águas turvas do Arade invernoso não permitem o trabalho de campo, os investigadores vão aproveitar para sistematizar a informação até agora já recolhida. E também nesta área há muito, mas mesmo muito, para fazer.