Daniel Luz é um dos (poucos) mestres que sabe a arte de construir uma viola campaniça com as próprias mãos. Um dos instrumentos que dá som ao Cante Alentejano esteve muito perto de desaparecer e houve tempos em que encontrar uma viola campaniça era uma aventura. Daniel Luz viveu-a e depois ajudou, guitarra a guitarra, a repovoar o Alentejo – e agora a povoar o Mundo – com este tradicional cordofone alentejano.
Os jornalistas fazem perguntas à procura de uma história mas, no caso de Daniel Luz, bastou uma abordagem do Sul Informação, no seu stand na FACECO, e o artesão contou a sua, praticamente sem interrupções, como quem lia um livro:
«Eu sou Daniel Inácio da Luz, mais conhecido como Daniel Luz, de S. Teotónio, construtor de cordofones. Comecei com o bichinho de construir instrumentos quando tinha 20 anos, sendo que estava a aprender a ser carpinteiro desde os 15. Nessa altura, eu convivia com vários amigos de S. Teotónio que tinham instrumentos e que tocavam. Uma vez, pedi um bandolim a um dos amigos e copiei o melhor que pude e soube e fiz um bandolim, quer dizer… mais ou menos. Mas isto é complicado: mal se mexe, e se faz uma coisa, nunca mais se é capaz de parar e queremos sempre fazer mais. Pensamos “agora tenho de fazer outro melhor”. E se faço um bandolim por que não uma guitarra clássica? E assim foi. Não saiu muito bem a primeira, mas depois fui aperfeiçoando. Fui aprendendo, de bandolim em bandolim, de guitarra em guitarra. Depois de ter começado, as pessoas vinham ter com o Daniel Luz, com instrumentos velhos que havia pela aldeia, para reconstruí-los. Então, fui tirando medidas, fui aprendendo as várias formas de construção, aperfeiçoei o meu método, e comecei a criar instrumentos todos desenhados por mim. Passaram-se 57 anos».
Mas, à oficina de Daniel Luz, nunca chegou uma viola campaniça para reparar. Por isso, o artesão foi à procura:
«Conhecíamos aqui em S. Teotónio esse instrumento como a viola do canto de despique. Havia um “homenzito” das abas da serra de Monchique, que era o Adelino “Cego”, que era cego de uma vista, e ele tocava isso. Era um homem que vivia miseravelmente e, nas feiras e mercados, vinha a S. Teotónio e tocava para arranjar uma “buchazita” e um copo de vinho. Mas isto foi há uma “carrada” de anos. Depois, desapareceu completamente da nossa terra. Até que ouvi dizer que na zona da Aldeia Nova, onde há uma barragem, havia uns seis ou sete tocadores. Eles foram-se espalhando e um desses resistentes veio morar para Garvão. Nessa altura, já só esse “tocador” e um tal Amílcar Silva, que construía também toscamente a viola, em São Martinho das Amoreiras, é que tocavam na região. Um dia, vi no programa das festas de Maio de Amoreiras-Gare que ia haver canto de baldão e violas campaniças. Pensei: “vamos ver se é agora que tenho a ocasião de ver, ou rever, uma viola campaniça”. E então, fui tirar as medidas ao instrumento. Tirei umas fotografias, o homem foi execionalmente simpático e, a partir daí, comecei a fazer e nunca mais parei, já perdi a conta a quantas violas fiz».
Daniel Luz lembra «uma história engraçada, porque, depois, foram-se descobrindo alguns velhos que ainda tocavam e fiz, nessa altura, uma viola campaniça para um senhor de 92 anos. Ele disse-me: “eu quero uma viola campaniça porque eu tocava, e depois deixei. Agora, comecei a ouvir na rádio a viola a acompanhar o cante alentejano e igual a isso faço eu, ou melhor”. E então veio a minha casa encomendar-me».
Com os moldes tirados, Daniel Luz tornou-se especialista e «comecei a fazer mais porque a viola campaniça estava a desaparecer e disse: “enquantou houver tocadores, eu fabrico campaniças”. Mas isso já passou, porque, neste momento, está disseminada por todo o lado. Já fiz violas campaniças para uma data de países. Não sei se é para pendurar na parede, ou tocar. Estou a fazer sete violas dessas e tenho encomendas para mais sete. O facto de o Cante Alentejano ter sido declarado Património Mundial deu uma grande ajuda. Embora já estivesse em ascensão, aumentou bastante e, ainda na semana passada, duas senhoras brasileiras vieram do Porto até Odemira para encomendar uma viola campaniça».
América, Grécia, Israel, Holanda ou Bélgica já têm guitarras campaniças feitas pelas mãos de Daniel Luz e há também artistas de renome que apreciam o trabalho do artesão alentejano: «o Tim [Xutos e Pontapés] tem três instrumentos meus e também o Pedro Mestre. Também já fiz instrumentos para os Adiafa e os Diabo na Cruz têm uma viola campaniça».
Por ano, entre violas campaniças, guitarras portuguesas, clássicas e outros cordofones, Daniel Luz faz «20 instrumentos. Faço tudo à mão. Demora muito tempo: uma viola campaniça, para ficar em condições de envernizar, são 56 horas de trabalho, e, no caso da guitarra portugueesa, são mais de 100».
Daniel Luz tem 77 anos e não quer que a sua arte se perca: «Antigamente ninguém ensinava a fazer nada. Agora sim. Eu, por exemplo, estou a dar aulas a quatro rapazes e duas raparigas, para aprenderem a construir a viola campaniça. No meu tempo isso era impossível. Quem trabalhava nisto guardava para a família os segredos. Estou a ensinar com o mesmo método que utilizo, a ver se não se perde», explica.
Resta saber quanto custa trabalho deste artesão: «uma viola campaniça custa a partir de 450 euros, tudo feito com madeiras boas, pau santo e ébano. Uma guitarra clássica anda pelo mesmo valor, e uma portuguesa vai para mil euros, porque leva o dobro do tempo de uma campaniça e só o jogo de cordas são 150 euros», conclui.
O que é uma viola campaniça?
A viola campaniça, também chamada viola alentejana, era o instrumento usado para acompanhar os “cantes a despique”, nas feiras e festas do Alentejo. É a maior das violas portuguesas e possui 5 ordens de cordas, tocada de dedilhado apenas com o polegar, sendo que as cordas mais graves são geralmente tocadas soltas. Apesar de ser um instrumento de dez cordas, pode possuir doze afinadores o que pode indiciar que o instrumento, que se crê que tenha evoluido a partir da “Vihuela de Mano” medieval , foi outrora dotado de uma sexta ordem de cordas duplas, mas que estas terão caído em desuso.
Fotografia: Martyna Mazurek/Sul Informação