São 3 a 5 horas de treino diárias, 7 dias por semana, durante praticamente todo o ano, a que se tem de juntar o tempo em competição e os estágios, sempre que há condições para os realizar. Foi com esta receita que o treinador Paulo Murta, do Clube Oriental de Pechão, cozinhou a campeã Ana Cabecinha, a mais destacada marchadora portuguesa da atualidade, e que pretende continuar a aplicar, para potenciar muitos outros jovens promissores que treinam no clube, muitos dos quais já detentores de títulos.
No fundo, tudo passa por esforço e dedicação, algo que Ana Cabecinha tem mostrado desde que começou a treinar, com 11 anos. Mas há também uma boa dose de carinho envolvida, que chega «das pessoas de Pechão, do concelho e da região», salientaram a atleta e Paulo Murta, numa conversa com o Sul Informação.
«No desporto, não há sorte, há trabalho. E trabalhamos muito para ter sorte. São muitas semanas, muitas horas semanais, muitos quilómetros percorridos. A Ana faz cerca de 7 mil quilómetros por ano, entre corrida e marcha. Treina muito próximo das 50 semanas e tem um média de 13 treinos por semana. É uma atleta profissional», ilustrou Paulo Murta.
A atual campeã nacional (3 mil e 10 mil metros em Pista Coberta e Pista Ar Livre) e detentora do recorde nacional de 20 quilómetros marcha voltou há pouco dos Jogos Olímpicos do Rio 2016 e trouxe na bagagem um diploma olímpico, fruto de um excelente 6º lugar na prova de marcha atlética, o melhor resultado de sempre para Portugal numas Olimpíadas, nesta modalidade.
Para lá chegar, Ana Cabecinha teve de se dedicar a fundo, enfrentar algumas contrariedades e até de sofrer, mas não se arrepende. «Para mim, o balanço destes últimos quatro anos só pode ser positivo. Muita coisa mudou, começámos a trabalhar de forma diferente e os resultados estão à vista. Fomos finalistas em mundiais e europeus, fui 4ª no mundial de 2015 e 6ª no Rio 2016, fui campeã de Portugal e bati recordes. Tudo graças à equipa, porque não fui só eu», resumiu a atleta.
«Este ciclo olímpico foi diferente dos anteriores (Pequim 2008 e Londres 2012). Depois de Londres, pensámos que a maturidade e anos de prática da Ana já obrigavam a que lá estivéssemos de maneira totalmente diferente. Evoluímos quer no treino em si, quer com a criação de uma equipa multidisciplinar, que tem estado a trabalhar connosco, coisa que até aí pouco ou nada existia», segundo Paulo Murta.
E isso notou-se nos resultados. «Desde 2012, só em poucas provas é que a Ana não ficou no top 10. Na maioria delas ficou no top 8, que é considerada finalista», disse o treinador algarvio.
Para muitos, ver uma atleta de um pequeno clube de uma aldeia de Olhão conseguir um resultado excecional nas Olimpíadas, pode causar estranheza. Mas, para marchadora e treinador, aquilo que não se ganha em termos de retorno financeiro, que seria possível através do vínculo a um grande clube, é compensado pela envolvência e pelo apoio que chega de quem está mais próximo, também eles um capital a ter em conta.
«Tivemos propostas ao longo dos anos para ir para o FC Porto, Sporting e Benfica. Foi sempre tudo muito ponderado e sempre recusei. O Pechão é o clube de paixão e não sinto que por estar a ele vinculada não tenha os mesmos apoios que teria num clube grande», contou Ana Cabecinha.
Uma convicção que é partilhada por um dos nomes maiores do atletismo português. «Em 2008, a Rosa Mota esteve a falar comigo e ainda hoje ela fala comigo sobre isso, dizendo que não interessa estar num clube grande. Ela também esteve sempre num clube pequeno e não deixou de conseguir o que conseguiu por isso. Disse-me para me manter sempre ligada às minhas raízes, onde me sentia bem, e não ir atrás da ilusão do dinheiro e de um clube grande. Nunca me esqueci das palavras que ela me disse», recordou a marchadora algarvia.
No ano passado, voltou a encontrar-se com Rosa Mota, vencedora da maratona feminina nos Olímpicos de Seul em 1988 e bronze nos JO de Los Angeles 1984, na meia-maratona de Quarteira. «Veio ter comigo e disse que ficava feliz por ver que ainda continuava no Oriental de Pechão», acrescentou.
Até porque o retorno, em termos afetivos, é bem grande, quando se representa um clube de menor dimensão. «Em 2008, chegámos a Lisboa ao mesmo tempo que o Nelson Évora, que tinha sido campeão olímpico no triplo salto. Estavam lá cerca de 80 pessoas à espera dele, a maioria amigos. No dia seguinte viemos para o Algarve e estavam cerca de 150 pessoas à nossa espera, que nos acompanharam em festa até ao Pechão. A forma como foi carinhosamente recebida não tem preço», considerou Paulo Murta.
É neste ambiente que Ana Cabecinha vai procurar preparar-se da melhor forma para os Jogos Olímpicos de 2020, onde acredita que poderá garantir uma medalha que deseja «mais do que ninguém».