Uma gruta com vestígios de ocupação humana do Paleolítico Médio, de há mais de 40 mil anos, atribuíveis ao Homem de Neandertal, foi descoberta no terreno onde há um mês começou a ser construída a ETAR da Companheira, na margem da ribeira de Boina, afluente do Arade, em Portimão.
Esta gruta está, para já, fora da área de intervenção da obra, mas esta semana foi descoberta uma segunda cavidade, bem no meio dos trabalhos. A importância do achado arqueológico pode obrigar a alterar os projetos da azarada ETAR da Companheira, levando a um atraso na obra.
Para debater as implicações dos achados arqueológicos e os passos seguintes esta manhã teve lugar uma reunião no local da obra, que contou com técnicos da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), Direção-Geral do Património Cultural (ex-Igespar), do Centro Náutica de Arqueologia Náutica e Subaquática, da Direção Regional de Cultura, da Câmara de Portimão, do empreiteiro e ainda do dono da obra, a empresa Águas do Algarve.
Nuno Bicho, arqueólogo especialista na Pré-História e professor da Universidade do Algarve, adiantou ao Sul Informação que, «logo que foi descoberta a primeira gruta, uma equipa da UAlg e de colegas da Direção Regional de Cultura fizeram uma primeira intervenção arqueológica, para medir o seu potencial», tendo entrado na cavidade natural aberta no subsolo calcário, que se pensa poder mesmo ter várias ramificações e outras galerias mais estreitas.
E o que descobriram entusiasmou os investigadores. «Foram encontrados, apenas numa intervenção de sondagem inicial, ossos de animais e utensílios em pedra talhada», com características atribuíveis a uma ocupação do Paleolítico Médio, feita pelo Homem de Neandertal.
«É uma cronologia muito rara no Algarve», garante Nuno Bicho. Na realidade, na região só se conhecia uma outra gruta com o mesmo tipo de ligação ao Homem de Neandertal, a gruta de Ibn Ammar, também na mesma zona, na margem lagoense do Rio Arade, e curiosamente escavada por aquele arqueólogo. E abaixo de Setúbal, a mesma cronologia só surgiu até agora na Gruta do Escoural, no Alentejo. No entanto, em ambos os contextos, quando lá foram feitas escavações arqueológicas, «já estava tudo muito alterado, destruído e remexido».
«Não temos assim tantas jazidas bem preservadas» desta época remota, garante. Por isso, a descoberta acidental desta gruta da Companheira é «uma boa oportunidade para conhecer melhor» a ocupação feita pelo Homem de Neandertal no Sul do país.
Nuno Bicho, que é também responsável pelo projeto de levantamento do potencial arqueológico das grutas do Algarve, diz que a nova gruta «não tem nenhuma interferência direta» com a área do terreno onde está a ser construída a ETAR, embora admite que esteja «muito próxima». O achado, aliás, foi feito e comunicado pelos técnicos da empresa de arqueologia que o empreiteiro contratou, a Archeofactory.
O arqueólogo e professor universitário espera agora que, da reunião entre as diversas entidades, possa sair um plano de ação que permita conciliar o interesse da defesa de um património «sem igual» e da construção da tão esperada ETAR. «O nosso objetivo é continuar a intervenção arqueológica para determinar a importância e, a partir daí, fazer um projeto de investigação completo, com financiamento da FCT», e quem sabe, da própria empresa Águas do Algarve.
Teresa Fernandes, porta-voz da empresa proprietária da obra, disse ao Sul Informação que, depois de ter «de imediato notificado» a APA, a DGPC e a Câmara de Portimão da descoberta das duas grutas, se está agora a trabalhar para «ver o que lá está, a sua importância e que medidas tomar».
Apesar das palavras cautelosas dos vários intervenientes, o Sul Informação sabe que, tendo em conta a raridade e a importância dos vestígios arqueológicos encontrados, se houver interferência entre as obras e as grutas, a Direção-Geral do Património Cultural poderá obrigar a alterar o projeto da ETAR da Companheira, o que provocará atrasos significativos na intervenção. A empresa Águas do Algarve e a Câmara de Portimão não estão nada contentes com esta perspetiva.