Aos 7 anos, António Menéres ganhou uma máquina fotográfica num concurso de desenho, no Porto. «Era uma Zeiss Ikon que utilizava película no formato 6×9, popularmente designada por “caixote”, que usava rolo Agfa. Com ela comecei a fixar imagens de coisas que, de momento, estavam bem próximas de mim. Eram as coisas que então eram muito importantes para mim».
Mais tarde, jovem finalista do curso de arquitetura no Porto, foi uma dessas fotos – a das gémeas num carrinho de madeira feito com uma caixa de sabão – que abriu as portas para que António Menéres integrasse o restrito grupo de 18 pessoas que estiveram envolvidas no levantamento fotográfico exaustivo a que se chamou Inquérito à Arquitetura Regional Portuguesa, organizado pelo Sindicato de então, com algum apoio oficial (1955-1961), e que conduziu à edição do livro «Arquitetura Popular em Portugal».
«Nós fizemos uma aprendizagem, um verdadeiro estágio. Dos 18, só estamos seis vivos. O mais velho é o Nuno Teotónio Pereira, que tem 90 ou 91», recordou, em entrevista ao Sul Informação, o arquiteto António Menéres, de 83 anos.
Algumas das fotos que então fez, bem como muitas de antes e de depois, estão agora patentes até dia 1 de dezembro no Museu de Portimão, na exposição intitulada «Memórias do Tempo e do Património Construído». Trata-se de uma mostra promovida pelo Museu de Portimão, em parceria com a Delegação do Algarve da Ordem dos Arquitetos e a Direção Regional de Cultura do Algarve.
Ao todo, são 86 fotografias únicas, captadas entre 1953 e 2002, que registam o olhar deste homem, arquiteto de profissão, sobre um património que vai desaparecendo ou é destruído no tempo.
Na sua entrevista ao Sul Informação, António Menéres explicou que a exposição foi produzida em 2009, quando foi «convidado a fazer uma exposição no Brasil, pelo Banco do Nordeste, com o apoio de dois professores da Universidade do Ceará, em Fortaleza. Essa exposição ficou no Brasil, mas deu azo a que ela fosse repetida cá em Portugal – já esteve no Museu Soares dos Reis, depois no Museu da Água de Coimbra, para Viseu e agora está em Portimão».
«Esperemos que inicie aqui em Portimão uma itinerância algarvia, esperemos que pelo menos vá a Tavira e Faro», sublinhou o arquiteto, acrescentando que, para isso, «já há contactos com a diretora regional de Cultura».
De lambreta, pelo Portugal verdadeiro e profundo
A exposição conta muito mais que as aventuras feitas durante esse trabalho pioneiro que foi o Inquérito à Arquitetura Regional Portuguesa. Montados em seis lambretas, dois em cada uma, com sacos e máquinas fotográficas às costas, eles eram um grupo de jovens arquitetos que, no fim de caminhos poeirentos, em sítios que nem estradas tinham, descobriram as arquiteturas populares de Portugal.
No caso de António Menéres, que fez equipa com Fernando Távora e Rui Pimentel, calhou-lhe uma área do país que ia «desde o Norte de Coimbra (zona de Mira) ao Rio Minho, do Litoral até ao interior, nas faldas do Marão».
«Era a zona de maior densidade demográfica», com muita coisa para registar. Por isso, recorda, «para desenvolver o trabalho no tempo que tínhamos, em seis meses de trabalho de campo, vimo-nos atrapalhados. Felizmente, o ministro Arantes e Oliveira solicitou ao Salazar e ele permitiu mais 100 contos para o inquérito», que assim continuou por mais algum tempo.
Com esse Inquérito inédito, ainda hoje «muito estudado pelos estudantes de arquitetura», António Menéres e os seus jovens colegas descobriram «as arquiteturas populares: elas são muitas e diversificadas, tal como a paisagem e a história, o que é curioso, sendo um país tão pequeno. Nós começámos a ficar apaixonados pela arquitetura do milho, ligada aos vales onde se cultivava o milho. Outras coisas ficaram por ver, como os sargaceiros, o Gerês e a sua arquitetura de montanha».
Era, sublinha o arquiteto falando com entusiasmo, «uma arquitetura popular que se ligava à economia local, aos modos de falar, ao entendimento do mundo rural, aos comeres e à gastronomia». Por exemplo, «o mundo rural no Algarve no Barrocal é totalmente diferente do mundo rural num vale do Minho ou em Miranda do Douro».
E que vê hoje como lição dessas arquiteturas populares (que o arquiteto insiste que se diz sempre assim, «no plural»)? «É uma arquitetura do necessário, de verdade, o que ela tem de decorativo é complementar e está sempre muito bem ajustado, não há um decorativismo de pastiche ou exibicionismo. É uma arquitetura não exibicionista, que lança mão aos materiais das redondezas, quase na tradição pré-histórica. Porquê? Porque a vivência das pessoas em grande parte estava ligada à terra, aos rios, ao mar. A movimentação das populações era muito reduzida e as pessoas tinham tempo para pensar nas suas arquiteturas. Como eram os próprios que construíam, num sistema de interajuda local, não tinham as veleidades que nós hoje em dia temos que, desde que se tenha dinheiro, manda-se construir e por vezes constrói-se coisas que não são necessárias».
Com desgosto, António Menéres admite que «hoje não se sabe fazer uma arquitetura orgânica, ligada ao terreno. Agora é uma arquitetura pousada num tabuleiro, que agride a paisagem».
Ora, pelo contrário, essa «arquitetura de verdade, feita ao longo do tempo, é também não muito datável. Era ligada à economia de subsistência, iam pensando o que precisavam». Hoje, «para ser mais barato, entrega-se a arquitetura a rabiscadores. A consequência é que o país de Norte a Sul está como está».
Regressos de hoje, com «imensa tristeza»
Voltando à exposição que pode ser vista até ao próximo domingo, dia 1 de dezembro, em Portimão, o Sul Informação quis saber se António Menéres alguma vez teve a curiosidade de voltar aos locais que, desde os anos 50 e ao longo de meio século, foi fotografando. «Sim, mas faço-o sempre com uma visão de uma imensa tristeza», confessa.
E porquê? Porque muito do património que registou com a sua câmara fotográfica foi sendo destruído. «Tenho dois casos paradigmáticos – um no Sul, na ribeira de Odeleite, um moinho de maré que foi completamente desvirtuado com dinheiros da União Europeia. Não sei se o projeto que lá está foi feito por um arquiteto, nem isso agora interessa. Mas o que lá está é mau. Outro péssimo exemplo é uma maravilhosa capela de peregrinação de Santa Madalena do Lindoso (Minho), que a Comissão Fabriqueira destruiu com a bênção do pároco. Agora é uma capela de papelão». As fotografias do moinho e da capela, no seu original, estão patentes no Museu de Portimão.
Isso quer dizer que entretanto se desaprendeu? «Nas nossas Faculdades de Arquitetura, nas públicas, a consciência pedagógica é de muito bom nível. As privadas primeiro explodiram, surgiram cursos a torto e a direito que eram um exagero para as nossas necessidades e agora não servem para nada. Uma privada tem uma necessidade de rentabilização económica que uma pública não tem, e isso pode comprometer a qualidade», afirma, sem papas na língua, ele que, depois de se reformar da Faculdade de Arquitetura do Porto até deu aulas numa universidade privada.
«Há um novo desafio que se coloca às novas gerações de arquitetos, que têm dificuldade de arranjar um estágio em gabinetes de colegas mais velhos, porque os mais velhos praticamente não têm trabalho. Por isso, os mais novos não têm conhecimento de obra, de estaleiro. E, fazem-no como uma defesa, viciam-se na arquitetura de revista e a concorrer a concursos».
António Menéres vê nesta falta de obra um outro «grande drama». É que, «como não há obra, os velhos encarregados, os mestres, vão desaparecendo. Deixam de ter oportunidade de transmitir o saber empírico que é importante. Por exemplo, saber que não se deve rebocar uma parede em dia de calor, ou meter um soalho antes da casa ter caixilharias e vidros».
E hoje, meio século depois, o Inquérito ainda tem interesse? Ainda há alguma coisa que se possa aprender? António Menéres não tem dúvidas: «o Inquérito continua a constituir uma lição do bem construir com meios e materiais rudimentares, mas sempre com integração no meio ambiente. Foi uma coisa que nós perdemos, essa capacidade de integração».
O idoso arquiteto, que vibra quando fala destes temas que o apaixonam, confessa apenas uma grande mágoa. É que, como disse ao Sul Informação, em rigor já nem é arquiteto desde há cinco anos, uma vez que desde então que não faz um projeto, por falta de solicitações. «Era isso que eu queria fazer, um projeto. Pode até ser aqui no Algarve». Fica o recado.
Um pouco de biografia
António Menéres, que nasceu em Matosinhos no dia 26 de abril de 1930, foi um dos jovens arquitetos envolvidos no levantamento fotográfico exaustivo que se chamou Inquérito à Arquitetura Regional Portuguesa, organizado pelo Sindicato de então com algum apoio oficial (1955-1961) e que conduziu à edição do livro «Arquitetura Popular em Portugal».
Dos fotógrafos-arquitetos participantes, só três expuseram como fotógrafos, em mostras coletivas e individuais: Keil do Amaral (em duas edições das Exposições Gerais e postumamente em 1999), Nuno Teotónio Pereira (2004) e o próprio António Menéres, que tem sido, em anos recentes, uma das grandes memórias vivas e um dos divulgadores do Inquérito – mas sem se deter no saudosismo e sem pousar as câmaras.
Menéres continuou a usar a fotografia para estudar e deixar registada a arquitetura anónima, popular, tradicional ou vernácula, aquela que, ao longo do tempo, foi respondendo à necessidade de construir com os materiais próprios dos lugares, usando soluções validadas pelo uso, adequadas aos climas e certas com as paisagens – as que foram também construindo as paisagens humanizadas que se conhecem.
Depois de ter estagiado nos gabinetes dos arquitetos professores Fernando Távora e João Andersen, exerce a profissão liberal desde 1962, sendo autor de inúmeros projetos situados especialmente no Porto e na região Norte, mas com algumas outras intervenções, em Queluz, Almeida, Ponta Delgada e Trancoso.
Foi também docente na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, até à sua aposentação, e continua a fazer, com regularidade, trabalho de pesquisa e sua divulgação no âmbito do património arquitetónico.