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Podem os cemitérios ser mais que lugares de tristeza e morte? Podem. Isso mesmo ficou mais uma vez provado este sábado, com a visita cultural ao Cemitério de Loulé, guiada por Luís Guerreiro e Luísa Martins, investigadores da História e Cultura local, e promovida pela Câmara Municipal no âmbito das comemorações do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios.

«Para além do significado religioso e de memória, este cemitério é também uma excelente fonte de informação, para melhor conhecer a história contemporânea de Loulé», salientou Luís Guerreiro, logo no início da visita do grupo de cerca de dezena e meia de pessoas. «Os cemitérios são autênticos museus a céu aberto», frisou.

«Um cemitério é um espaço visitado socialmente no dia 1 de Novembro e quando morre um familiar ou amigo. Mas a nossa estratégia em Loulé passa por valorizar a memória. Temos um projeto museológico em Loulé que não passa apenas pela arqueologia. Por isso, consideramos que um cemitério como o nosso não é apenas tristeza, mas memória e cultura», acrescentou Joaquim Guerreiro, vereador da Cultura da Câmara de Loulé, e um dos participantes na visita.

O atual Cemitério de Loulé foi inaugurado em 1918, por altura da pneumónica, doença que matou milhares de pessoas em todo o país. Luísa Martins recordou as verdadeiras guerras que se viveram em Portugal desde o século XVIII, para acabar com a tradição religiosa e nada higiénica de sepultar os mortos no interior das igrejas e nos seus adros.

Os cemitérios civis, longe das igrejas e das povoações, resultavam de uma preocupação com a saúde pública, mas, mesmo assim, a sua criação foi muito contestada pelas pessoas ligadas à Igreja Católica. De tal forma que, como salientou Luísa Martins, esta questão esteve mesmo na origem de uma das muitas revoltas do século XIX, a Maria da Fonte.

Mas, sobretudo após a implantação da República, os cemitérios civis acabaram por impor-se. E traduziram também a estrutura social e até o pensamento político de quem aí tinha o seu último repouso. Em Loulé, o cemitério tem uma larga rua central, de onde partem outras ruas. Logo à entrada, de cada lado dessa rua central, estão os jazigos das duas famílias mais importantes da então vila.

«José Martins Farrajota e Maria das Dores Farrajota e Família» e «Angelo José de Castro e Família» são as inscrições que se podem ler na frontaria de cada um dos jazigos, decorados com motivos maçónicos e laicos, já que ambos, além de serem abastados e influentes comerciantes, eram também destacados republicanos.

Luísa Martins recordou que os ideais maçónicos e laicos pretendiam que as pessoas, já que não são iguais em vida, ao menos o fossem na morte. Lindas ideias, mas que a própria configuração espacial do Cemitério de Loulé desmente, «com os mais ricos ao centro e de um lado e os mais pobres ao fundo e no outro lado, traduzindo a realidade social da vila», como sublinhou, por seu lado, Luís Guerreiro.

 

Símbolos maçónicos num cemitério civil

Ao longo da visita, a investigadora foi chamando a atenção para os aspetos simbólicos das decorações dos jazigos, muitos com colunas na fachada (um elemento maçónico por excelência, já que representam o Templo de Salomão com as suas colunas), com os seus fachos invertidos (símbolo da vida que se esvai), as folhas de acanto ou de louro, as flores, as chamas, os anjos, as cruzes, a foice ou gadanha da morte, a caveira, entre muitos outros. Ao todo, em Portugal, recordou Luísa Martins, já foram identificados mais de cem signos cemiteriais.

Luís Guerreiro revelou que tanto José Martins Farrajota como Ângelo José de Castro morreram anos antes da inauguração do atual Cemitério, mas foram trasladados para os novos jazigos. Na larga rua da direita, sucedem-se depois os jazigos de outras famílias importantes, como o que ostenta a inscrição em pedra «Família Magalhães» e onde está sepultado Duarte Pacheco, ministro das Obras Públicas de Salazar, responsável pelo impulso de investimento que mudou o país, em especial Lisboa, com o aeroporto, a autoestrada, o Instituto Superior Técnico, o Estádio Nacional, os novos bairros de Alvalade, Encarnação, Madredeus e Caselas, em Lisboa. Duarte Pacheco, natural de Loulé, morreu prematuramente num acidente de viação em 1943 e está sepultado na sua terra natal.

Segue-se o jazigo de Frutuoso da Silva, outro rico comerciante, que construiu o Cine-Teatro Louletano, ou o de «Joaquim Marcello Adelino e sua Família», uma bela peça arquitetónica e escultórica, ladeado por dois anjos laterais, com as inscrições «Eternidade» e «Verdade». Neste caso, como em tantos outros, o túmulo é decorado com símbolos maçónicos – as colunas, por exemplo -, mas também ostenta uma cruz, um «compromisso entre igreja e espaço laico» que acabou por imperar.

Depois, nessa rua, há o jazigo de «Manoel dos Santos Gallo», que foi o primeiro administrador do concelho de Loulé após a Implantação da República, bem como um dos fundadores do Centro Republicano Azevedo e Silva. Aí está sepultado também o seu filho Manuel dos Santos Gallo Júnior, que, como contou Luís Guerreiro, morreu em Lisboa em 1912, vítima de uma bomba que rebentou ao seu lado durante uma das muitas violentas escaramuças que nesses tempos deflagraram na capital da República. «Ele estava em Lisboa e, movido pela curiosidade, foi ao Rossio ver o que se passava. Rebentou-lhe essa bomba ao pé e morreu».

Mais à frente, está um jazigo mais recente, coberto de placas com versos inscritos. Aí está sepultado Francisco Nobre Portela, que foi ciclista em França e na sua terra integrou a equipa do Louletano, nos anos 30 do século XX. Participou em duas voltas a Portugal, foi comerciante de prestígio e era poeta.

 

Histórias e mistérios ainda por investigar

Continuando por essa rua da direita, surge um monumento funerário diferente, que celebra um jovem militar espanhol pertencente à Ordem da Torre e Espada. Quem seria este militar? Luís Guerreiro não sabe, mas promete ir à procura de informação, que possa revelar na próxima visita cultural ao Cemitério de Loulé.

O investigador salienta, aliás, que neste cemitério há muitos espanhóis. A primeira leva desses espanhóis veio sobretudo da zona de Vila Nueva de Castelejos, na província de Huelva, no século XIX, empurrados primeiro pelas invasões francesas e depois pela guerra civil carlista.

«A maior parte desses espanhóis estabeleceu-se em Loulé como comerciante. Quase toda a rua das lojas era deles. Ainda hoje há muitos descendentes destes espanhóis em Loulé. Os Romeros, Formosinhos, Pablos, Franca são deles descendentes», disse Luís Guerreiro. Aliás, no grupo de pessoas que participou na visita, estava precisamente um membro da família Franca.

Mas houve ainda outra leva de espanhóis, já no século XX, de origem diferente, e que também estão sepultados em Loulé. Noutro local do cemitério, em campa rasa e apenas assinalada com lápides com os nomes em latim, estão sepultados alguns dos padres jesuítas que, após a 2ª República espanhola, fugiram do país vizinho. O Colégio Gonzaga, uma grande instituição jesuíta espanhola, mudou-se para Loulé entre 1934 e 1939, tendo funcionado no Palácio Gama Lobos, ainda hoje chamado Palácio dos Espanhóis.

«No primeiro ano de funcionamento em Portugal, esse Colégio funcionou na Quinta de Marim, em Olhão, mas no ano seguinte vieram para Loulé, onde chegaram a estar 60 pessoas, de tal forma que até foi construída uma nova ala no palácio Gama Lobos, para refeitório e outras finalidades». Com os padres jesuítas vieram alguns dos seus alunos espanhóis e as suas mães, bem como freiras, que se instalaram no Convento do Espírito Santo. «Mas foi uma presença muito discreta, de tal forma que não há, nos jornais da época ou nas atas da Câmara, referências nenhumas à sua estadia», estranha Luís Guerreiro.

Voltando à zona dos ricos neste Cemitério de Loulé, o investigador sublinhou que a rua principal – quase uma cópia da avenida principal de uma cidade – poderia ser chamada «em tom de brincadeira, a avenida dos presidentes da Câmara», tal o número de ex-autarcas que aqui está sepultada.

Um deles repousa no «mais enigmático monumento funerário de todo o cemitério», como sublinhou Luísa Martins. Trata-se de um mausoléu baixo, com uma escada que não conduz a lado nenhum e que parece nunca ter sido acabado. No entanto, o espaço funerário integra uma catacumba subterrânea, com capela.

Este mausoléu pertence a José da Costa Ascensão, apresentado por Luís Guerreiro como um «republicano puro e duro», que foi responsável pelo projeto de uma grande avenida que haveria de conduzir à Mãe Soberana, o santuário no topo de um monte junto a Loulé. «Foi um projeto muito polémico, que nunca chegou a concretizar-se».

Na mesma rua se situa o jazigo de José da Costa Mealha, que também foi presidente da Câmara e cujo nome identifica hoje a avenida central de Loulé, onde decorre o Carnaval. «Era um grande comerciante de frutos secos, um homem abastado, que viajava muito», disse Luís Guerreiro. «Nos finais do século XIX e princípios do século XX, os grandes comerciantes, em especial de frutos secos, eram a classe mais endinheirada e também quem mais viajava, em negócios, pela Europa fora. E nessas viagens contactavam com novas ideias, que traziam para o Algarve», acrescentou o investigador.

Nessa ala dos mais abastados está ainda o jazigo de José do Carmo Penis, assim mesmo, sem acento no “e”… «Não se riam», pediu com um sorriso Luís Guerreiro. É apenas um nome.

 

A campa quase rasa do poeta Aleixo

Mas nem só de grandes comerciantes e ex-presidentes de Câmara se faz a história do Cemitério de Loulé. Entre os muitos homens de cultura que por ali estão sepultados, o destaque vai para António Fernandes Aleixo, que foi cauteleiro, guardador de rebanhos, emigrante em França, polícia e poeta. Repousa numa campa quase rasa, coberta com uma lápide de mármore que ostenta uma das suas quadras, na zona popular do cemitério.

E no mesmo cemitério está ainda Joaquim Magalhães, que foi professor, mas acabou por ficar conhecido como o descobridor e “secretário” de António Aleixo, já que foi ele que fixou em escrita e organizou os seus poemas.

«As pessoas hoje ainda têm medo de entrar aqui, mas este é um lugar de grande tranquilidade. É também um lugar com história, marcado por uma arquitetura romântica e revivalista», sublinhou Luís Guerreiro, a terminar a visita de mais de duas horas.

«Quem foram os construtores destes monumentos?», interrogou-se, a finalizar, Luísa Martins. Um tema a investigar e que poderá ser, quem sabe, desvendado na próxima visita cultural ao Cemitério de Loulé.

É que, como garantiu ao Sul Informação o vereador da Cultura Joaquim Guerreiro, esta foi a terceira visita do género, mas a Câmara vai passar a promover regularmente duas visitas anuais, por altura dos Dia dos Monumentos,  em abril, e das Jornadas Europeias do Património, em setembro.

«O turismo cemiterial já se faz por toda a Europa, havendo até turistas que, quando visitam uma terra, vão ao seu cemitério para perceber a estrutura local dessa terra», acrescentou Joaquim Guerreiro. E as visitas culturais guiadas ao Cemitério de Loulé são apenas mais uma peça – bem original – na estratégia cultural da autarquia.

Vá já marcando na sua agenda: em setembro haverá nova visita. E, acredite, será uma manhã muito interessante e bem passada, numa viagem pelo tempo e pela memória guiada por dois excelentes contadores de história(s).

 

 

 

Veja a Fotogaleria sobre mais esta visita cultural ao Cemitério de Loulé

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