Portugal vende-se como um País democrático, e, em consonância com essa pretensão, possui uma série de estruturas e mecanismos que imitam as estruturas e mecanismos existentes em países avançados e verdadeiramente democráticos. Como não poderia deixar de ser, o povo português adopta essas estruturas e mecanismos, adoptando subsequentemente uma postura democrática.
Mas País e Povo adoptam esta parafernália regimental numa base fundamental: connosco ou contra nós.
Não é à toa que aqueles que se afirmam acérrima e inflamadamente democratas, o são apenas até ao ponto em que não se contestem as suas vacas sagradas ou as suas verdades absolutas. Aí entramos no campo dos comportamentos anti-democráticos, pois entramos no plano da discordância, onde os assuntos se tornam tabus e onde se instalam os silêncios sujos e ensurdecedores.
Mas isto não é de agora. Vem de há muito. Vem da base do regime, instituído num fundamento orwelliano, à moda d’”O Triunfo dos Porcos”.
Aliás, a antiguidade da coisa é tal, que nem anciãos como Mário Soares se lembram (e ninguém os lembra), e apesar de em muitas horas da verdade (algumas parecidas com a actual), terem metido tudo isso na gaveta, hoje andam para aí a arengar preceitos, virtudes e morais democráticas. Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço…
Não é portanto de estranhar que quando é lançada uma consulta pública, por exemplo de um regime jurídico capaz de alterar profundamente o processo de ordenamento e gestão territorial, a intenção não vá muito além da manutenção das aparências.
Isto aconteceu recentemente com a proposta da nova Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Urbanismo, que, em Maio passado, finalizou uma ronda de audição especializada junto de Ordens e Associações profissionais da área.
Desde logo, aquando da recente apresentação em sede da Assembleia da República, foi rebaptizada de Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e Urbanismo. Uma pequena grande diferença.
A proposta é extensa e não cabe aqui a sua análise completa, mas, em traços gerais, da sua leitura ficou uma sensação surreal de se encontrarem, aqui e ali, alguns bons princípios, mas deturpados até à náusea na sua aplicação, ou antes, na redacção apresentada, que os coloca num perigosíssimo limiar de interpretação, podendo levar a que se constituam como autênticas Caixas de Pandora.
E depois há coisas verdadeiramente perigosas. Dentro destas, destaca-se a materialização de uma visão de municipalização absoluta do território nacional, em que os interesses locais se passam a sobrepor aos interesses regionais ou nacionais, do que é bom exemplo o fim da sujeição dos Planos Directores Municipais a ratificação em Conselho de Ministros.
A menos que os Municípios pretendam isentar-se de cumprir Planos Especiais de Ordenamento do Território (extintos sob forma de uma caricatura) ou outros hierarquicamente superiores, situação em que podem pedir a bênção do Governo para abertamente sacrificar o todo pela pequena parte.
Não é difícil de ver que, sem alteração da lei de financiamento das autarquias, a tentação continuará a ser a edificação para angariação de receitas, mesmo que o mercado imobiliário esteja completamente dinamitado (temos o deplorável exemplo da Praia Grande).
Até porque a classificação de solo como urbano continua isenta de qualquer enquadramento ao nível da sua aptidão para este fim ou da necessidade de novas áreas edificáveis, percebendo-se que o betão nos corre no sangue e a urbanização é um desígnio sacrossanto e justificativo de todos os atropelos face à realidade da paisagem.
Esta proposta até inclui um prémio para quem violou as leis, e passa a existir, agora sim, a famigerada figura da “legalização”, que licencia ilegalidades, sob o eufemismo da “regularização de operações urbanísticas [onde cabe tudo, desde o fecho de uma varanda até um loteamento] realizadas sem controlo prévio”. Parvo de quem cumpriu, é a mensagem que se passa…
A neo-feudalização de Portugal irá operacionalizar centenas de pequenos reinos municipais (ou, numa nova nuance, reinos intermunicipais), desintegrados de uma visão estrutural do País. Ver o interesse público como o somatório de interesses particulares, constitui uma deturpação inaceitável do conceito.
É consagrar o ordenamento a retalho e minar qualquer hipótese de uma estratégia nacional de desenvolvimento coerente, justamente quando dela mais precisamos. É plantar uma árvore pela sua copa ou construir uma casa começando no telhado, partindo depois então para os alicerces. É recuar à Idade Média.
Isto sem falar na possibilidade da total alienação da responsabilidade do Estado, através de privatização por concessão ou cedência em diversos campos de gestão, desde as águas à recolha do lixo. Concretizada esta visão, para que pagaremos impostos à Administração, e para que servirá, se esta não prestar qualquer serviço aos cidadãos?
E qual a reacção das instâncias aos alertas e às sugestões dadas, apesar de informadas e fundamentadas?
A mais plácida e cândida indiferença, como se assistissem ao recital de um coro de mudos.
Os mais optimistas verão no facto da caravana passar, deixando os cães ladrar, sem sequer se dar ao trabalho de os enxotar, um sinal de grande abertura e espírito democrático, e um normal funcionamento das instituições, porque o que importa é poder fazer barulho, ainda que sem consequências. A legalidade indiferente à justiça ou à moralidade parece ser tónico suficiente para apaziguar a maioria das consciências em Portugal.
Embora admirável, e seguramente confortável, essa capacidade de alheação, ao melhor estilo de rebanho obediente, não apaga o facto de que, neste sistema, e nesta quinta, efectivamente, todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)