Afinal de contas, a singular apresentação pública sem direito a demandas incómodas porque pouco iluminadas, a propósito do Parque Ambiental da Praia Grande, mais do que um episódio isolado no de outra forma pacato Reino dos Algarves, parece ter inaugurado toda uma nova era de sessões nonsense.
A mais recente (conferência “Áreas Urbanas Portuguesas 2014-2020: Que futuro preparar?”, na Universidade do Algarve) pretendeu colocar as massas cinzentas a pensar sobre as cidades algarvias, enquanto motor de desenvolvimento e geração de riqueza, num exercício de preparação para o referencial do próximo quadro de apoios comunitários, que se centrará na competitividade territorial, com central destaque para as áreas urbanas.
Confesso que até gostei do arranque, com um diagnóstico relativamente coerente das razões que globalmente nos deixaram em tão apertada situação económica, realçando os problemas urbanos, onde se concentra a maior parte da população nacional.
Houve inclusivamente espaço para uma análise das razões pelas quais os municípios, na sua actual estrutura de financiamento e funcionamento, são incapazes de alavancar de forma efectiva o tecido produtivo, gerando e gerindo investimentos reprodutivos.
Não faltou também a queda da betonização e alcatroamento do altar de vectores sacrossantos de desenvolvimento do País e da região, a par da monocultura do turismo associado à expansão imobiliária, tornando-se agora mitos vãos, pesos mortos que nos arrastam na lama da falta de competitividade e da capacidade de angariação de investimento.
Tantas vezes tantos tentaram avisar, e ninguém quis ouvir. Agora todos se fazem de surpreendidos pela hecatombe que se abateu sobre o feudo. Já alguém o disse: haverá muitos incompetentes, mas inocentes, nenhuns…
A falta de emprego foi também identificada como o principal mal social e económico que afecta a nossa sociedade, em particular no contexto urbano, em que a subsistência se faz a partir de trocas comerciais e não com o apoio, mesmo que parcial, dos frutos do talhão de terra nas traseiras.
Até aqui tudo bem, poder-se-á pensar.
O problema surgiu quando, depois da doença devidamente identificada, o médico resolveu matar o paciente.
E fê-lo pela pretensão de encontrar soluções milagrosas com recurso aos mesmos santos e orações que iluminaram o caminho que nos trouxe ao actual cenário.
Ou seja, pretendendo virar azimutes para a reabilitação urbana e para a geração de emprego, transformando o paradigma em sentido diametralmente oposto, sem tocar na lei de financiamento dos partidos, na lei de financiamento das autarquias, ou na própria Constituição.
As cidades são, na feliz metáfora de Le Lannou, recordada por Beaujeu-Garnier, o fermento das regiões.
No entanto, se para actuar o fermento precisa de farinha, o mesmo se passa com as cidades. Para que transformem e acrescentem valor, carecem de um substrato que o produza, e este será sempre o sector primário, associado ao campo.
Daí que pensar cidades como entidades absolutas, e isoladas da sua envolvente, só pode gerar miséria. A cidade vive do campo, assim como o campo necessita da cidade. Ignorá-lo é demasiado retrógrado para que possa ser aceite.
Isto torna-se ainda mais verdade no caso das “cidades” algarvias, às quais se tenta agora aplicar um modelo idealizado para contextos de metrópoles reais, como o Algarve não tem nenhuma, e o País, na melhor (ou pior) das hipóteses, terá duas…
Não sei se é pelo facto da entidade que promoveu esta sessão ter a Lusófona como força motriz, embora em parceria com estabelecimentos de ensino sérios, mas a visão delirante de que os empregos se geram por pensamento positivo, e que as cidades são fins em si mesmas, parece-me débil, face aos desafios que se colocam.
É sabido que aquela empresa de venda de títulos académicos acredita nas equivalências como panaceia para todas as maleitas, desde o absentismo escolar à simples falta de vontade de estudar. Mas a revitalização e regeneração das cidades não se faz por matreirices administrativas ou, na linha de outros pensamentos independentes, despachos dominicais…
Para além disso, ver nas comunidades intermunicipais de nova geração – esse prolongamento dourado da carreira de alguns autarcas que, bem ou mal, já não podem continuar nas lides camarárias – a salvação do ordenamento do território, é esquecer que já existem instituições reguladoras do Estado com esse papel (ainda que necessitem, em muitos casos, de alterações profundas).
E esperar que quem conduziu, por visão, convicção, favor, obrigação ou ignorância, as cidades ao seu actual estado, licenciando e continuando a licenciar a amálgama de betão e asfalto, a par das grandes superfícies que desbarataram o comércio local (e que condicionam o sucesso de iniciativas meritórias, como a farense “Estamos na baixa”), agora venha, com aura redentora, emendar todos os erros, é mesmo um salto de fé.
Se indexarmos o financiamento dos municípios a indicadores de desenvolvimento associados à qualidade de vida das populações e não ao metro quadrado de pavimento ou ao metro cúbico de betão, como por exemplo o emprego, o tecido económico local, a produção primária e secundária, os serviços fundamentais ou a qualidade ambiental, aí talvez surja um novo modelo, e novos gestores territoriais a condizer.
Mas, deixando as eleições de ser um festival de popularidade e de distribuição e cobrança de favores, não sei se haverá muitos interessados…
Sem isso, esta regeneração das cidades não passará de um processo de equivalência.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)