Têm sido publicadas, recentemente, várias obras sobre a sociedade automática e a governação algorítmica. Um livro recente do filósofo francês Bernard Stiegler, sobre este mesmo assunto e as consequências da automatização sobre a organização social do emprego e do trabalho (Fayard, 2015), suscitou-me algumas reflexões que passo a partilhar com o leitor.
1. A revolução digital confunde-se, cada vez mais, com o advento da sociedade automática e a automatização, se quisermos, dos processos e procedimentos de cálculo automático que alguns denominam de sociedade algorítmica.
De que trata, então, a governação da sociedade algorítmica? De plataformas tecnológicas, de redes sociais, de dados brutos extraídos dessas redes sob a forma de sinais infra-pessoais, de procedimentos de cálculo e correlações estatísticas tendo em vista a formação de padrões de comportamento.
2. No plano estrutural, a governação da sociedade algorítmica alimenta-se de um ambiente informacional complexo, uma cibercultura, de onde sobressai a hiper-inteligência dos dispositivos tecnológicos (a smartificação), a gestão do BigData e do Cloud Computing e, obviamente, a “adição digital” que todo este complexo provoca junto dos utilizadores.
3. No plano do conhecimento, a governação da sociedade algorítmica “sabe lidar melhor” com a complexidade, essa é “a sua verdade”, isto é, ela administra uma objetividade colada e extraída do real, produzida em tempo real e sucessivamente reconfigurada por uma massa imensa de dados permanentemente actualizados.
4. No plano operacional, a gestão do sistema BigData faz a limpeza, triagem, categorização e cálculo algorítmico dos dados recolhidos nas redes sociais. Não interessa o contexto, a singularidade, a significação desses dados.
Os indivíduos são meros “agregados temporários de dados brutos”, quantificáveis e sucessivamente reconfigurados a uma escala industrial, se quisermos, uma espécie de coisificação dos indivíduos.
De resto, tudo fica indexado a um qualquer indicador quantitativo, de acordo com os objetivos e os fins da sociedade hipercompetitiva e performativa em que vivemos.
5. No plano da teoria crítica, estamos perante uma espécie de “modelo extrativista” em que os cidadãos internautas, utilizadores de redes e plataformas, são produtores e fornecedores de uma gigantesca massa de informação pessoal, muita dela subliminar, num ambiente informacional vertiginoso e hipnótico, que tem tanto de benignidade como de toxicidade. Este é um tópico de uma enorme sensibilidade, uma vez que está em causa a gestão da privacidade dos cidadãos.
6. No plano da relação de poder, a governação da sociedade algorítmica é, aparentemente, uma nova forma de gerir a incerteza e a insegurança políticas; todavia, ela procede por inversão dos termos da equação, isto é, são os meios (o sistema técnico e tecnológico) que tomam conta dos fins; como a inovação política, social e jurídica corre muito mais lentamente, há o risco de ficar prisioneira da elevada toxicidade da sociedade algorítmica.
7. No plano das métricas territoriais, a governação da sociedade algorítmica permite-nos introduzir e distinguir duas métricas importantes: a métrica dos territórios-zona (T-Z) e a métrica dos territórios-rede (T-R).
A primeira reporta-se ao poder hierárquico dos territórios convencionais, a segunda ao poder horizontal ou lateral dos territórios inteligentes que cultivam a inteligência coletiva por intermédio das novas plataformas digitais.
Os novos coletivos territoriais, por intermédio de plataformas colaborativas e de uma “nova economia dos bens comuns” são uma esperança para todos os territórios, sobretudo os mais desfavorecidos.
8. No plano cognitivo e do saber-conceptual, a governação da sociedade algorítmica, na sua exuberância calculatória, transforma os algoritmos em próteses cognitivas, que provocam não apenas a exteriorização do ,mas, também, a proletarização de algumasmuitas classes profissionais e intelectuais.
Neste sentido, a sociedade algorítmica é, portanto, uma sociedade altamente paradoxal com inúmeros conflitos políticos e culturais no horizonte próximo.
9. No plano do sujeito individual, os nossos “duplos algorítmicos” podem ser muito úteis se os soubermos manipular em nosso benefício; no resto, o nosso rasto, a nossa traçabilidade, serão explorados exaustivamente em ordem a produzir padrões supra-individuais que “antecipam e orientam” o nosso comportamento, tudo garantido pela governação e racionalidade algorítmicas.
10. Finalmente, no plano da organização social do emprego e do trabalho, tal como a conhecemos ainda hoje, a sociedade algorítmica da automatização é uma tecnologia verdadeiramente disruptiva, isto é, cria a breve prazo um forte desemprego estrutural.
Mas é, também, e apesar de tudo, uma grande oportunidade para a inovação social e política que chegará, estou certo, à boleia da mesma sociedade automática e algorítmica.
Nota Final
Chegados aqui, estou certo de que, por detrás da exuberância tecnológica, da economia das aplicações e dos empreendedores startupers, há, igualmente, uma revolução silenciosa em curso, a revolução do bom senso, da inteligência coletiva e da convivialidade.
Por isso, está em curso, também, a sociedade colaborativa, a economia do 4º setor (o dom, o voluntariado, a comunhão, a contribuição), a organização dos bens comuns colaborativos, as moedas sociais e complementares, a inteligência coletiva territorial e a formação de atores-rede, o rendimento básico de existência (a grande utopia do século XXI), a plena aplicação dos princípios da economia circular e uma nova organização do trabalho profundamente criativa e inovadora.
No mesmo sentido, em tempo de cibercultura, sociedade automática e governação algorítmica, há um debate essencial que está por fazer, qual seja, aquele que se refere às relações de causalidade entre a métrica das redes digitais e a métrica dos territórios hierárquicos, sobretudo político-administrativos, muito em especial os territórios mais remotos e desfavorecidos do interior do país.
Agora que se discute em Portugal um programa nacional de coesão territorial, o que é que a sociedade digital, as comunidades online e a governação algorítmica podem fazer pelas comunidades reais que habitam “o país oculto”?
Abandonam, reocupam?
Teremos de voltar mais vezes ao assunto.
Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas