O problema já é antigo e atravessa todo o século XX. Há muito que o Nordeste Algarvio é uma sub-região à beira de um ataque de nervos. Mais do que isso, com morte anunciada.
Entretanto, passaram trinta anos sobre a nossa adesão às Comunidades Europeias, hoje União Europeia. Para fazer um breve balanço do Nordeste Algarvio neste período, fui falar com alguns dos protagonistas. Eis a minha opinião sobre o assunto.
1. Uma história exemplar!
Na pequena sub-região do Nordeste Algarvio, que reúne o concelho de Alcoutim e a parte interior do concelho de Castro Marim, é a natureza que faz a história, não obstante os vários programas e medidas de intervenção territorial desde os anos oitenta.
Relembremos, pois, o PIDR (Programa Integrado de Desenvolvimento Rural) do Nordeste em meados dos anos 80, as medidas de acompanhamento da reforma da PAC de 1992, onde se contam as medidas agro-ambientais e agro-florestais, os programas de iniciativa comunitária Leader iniciadas nos anos 90, os programas nacionais dos vários quadros comunitários de apoio, os programas operacionais do Feoga/Feader para a agricultura e o desenvolvimento rural, os programas operacionais regionais do Algarve, os programas de cooperação transfronteiriça Algarve-Andaluzia, o programa de combate contra a desertificação do Nordeste Algarvio.
Apesar de todos estes instrumentos de intervenção, é o círculo vicioso que domina, a saber, a desertificação do capital natural acarreta o despovoamento do capital social.
No que diz respeito à constelação de interesses, e não obstante a escala reduzida do Nordeste Algarvio, a esta sub-região não parecem faltar os protagonistas: câmaras municipais, associações de desenvolvimento local, associações de proprietários florestais, associações de caçadores, cooperativas agrícolas, administração pública regional, zonas de intervenção florestal, empresas privadas de serviços agro-florestais.
Num território tão carenciado de recursos e capital social, não surpreende que o pulsar da sub-região aconteça ao sabor dos instrumentos de política pública que são impulsionados, em primeira linha, pelas autoridades públicas e as suas extensões no terreno: serviços públicos regionais, câmaras municipais e associações de desenvolvimento local.
E não surpreende também que sejam estas organizações a determinar as principais linhas de ataque aos problemas locais, com todas as consequências que as suas preferências sempre implicam e onde se incluem os conflitos de interesses sobre o modelo de exploração agro-florestal mais apropriado.
Já para não falar do chamado “sucesso dos programas”, geralmente associado a taxas de execução e despesa pública elevadas sem correspondência efetiva, neste caso, com os progressos socioeconómicos realmente observados no terreno.
2. O modelo de exploração agro-florestal e a economia do Nordeste Algarvio
De facto, ao observador exterior, parece que estamos num pequeno laboratório de experimentação de instrumentos de intervenção territorial que são recém-chegados por virtude da nossa adesão às comunidades europeias.
Dada a gravidade dos problemas em questão, não é difícil às autoridades regionais e locais “construir programas de intervenção”, que, de resto, a sub-região “já justificava” há muito tempo.
Assim institucionalizada, a sub-região fica imediatamente elegível e ao dispor dos principais beneficiários das medidas de política pública.
Esta é a face político-administrativa do problema, com incentivos para ministrar e resultados para obter no final dos programas.
O outro lado da moeda, porém, é uma microeconomia no limiar da subsistência e funcionando no regime de multifuncionalidade severa, de uma enorme vulnerabilidade em termos de sustentabilidade agroecológica, no fundo uma microgeoeconomia extremamente delicada a necessitar de cuidados especiais, intensivos e permanentes.
Na prática, se o PIDR do Nordeste ainda foi capaz de respeitar a economia de subsistência e multifuncionalidade severa da segunda metade dos anos 80, o mesmo não se poderá dizer acerca das medidas de acompanhamento da reforma da PAC de 1992, e, em especial, das medidas agro-florestais do regulamento comunitário 2080, a “nova coqueluche” do Nordeste Algarvio a partir de 1994.
De facto, a expectativa de 20 anos de compensação de rendimentos por perdas associadas à mudança de atividade económica e ocupação dos solos teve consequências muito contraditórias, que ainda hoje, vinte anos depois, fazem sentir os seus efeitos.
As medidas agro-ambientais e agro-florestais no Nordeste Algarvio precisam de ser reenquadradas num outro modelo de desenvolvimento da sub-região,que abranja todo o Baixo Guadiana e que recupere a multifuncionalidade agrossilvopastoril, por via de uma nova geração de “pagamentos ambientais ou ecossistémicos”
Na sua filosofia original, as medidas de acompanhamento da reforma da PAC visam conter a produção, proteger os recursos naturais e promover a floresta de proteção em terrenos e solos pouco produtivos, assim recuperando esses solos para a produção em momento posterior.
Em tese e em princípio, parecem razoavelmente ajustadas à situação do Nordeste Algarvio. O que aconteceu foi que se quebrou o delicado equilíbrio que vinha de trás e que consistia numa economia de subsistência, de pluriatividade e multifuncionalidade severas.
Com efeito, o regulamento 2080 reduziu substancialmente o uso múltiplo da floresta, deu início a uma monocultura florestal de pinheiro, implantou a chamada floresta de proteção com uma densidade muito elevada por hectare, 800 plantas por hectare.
É o tempo de viveiristas, projetistas e empreiteiros de serviços florestais fazerem a sua parte do negócio.
Breve, 30 a 40% dos proprietários optaram por azinhal puro ou misto, 70% por monocultura de pinhal. Esta monocultura florestal, ao quebrar o delicado equilíbrio que vinha de trás, pode ter resolvido as compensações ao rendimento durante algum tempo, mas bloqueou outras soluções possíveis ao alcance da agro-silvicultura, que teriam, talvez, poupado a pluriatividade e a multifuncionalidade do Nordeste Algarvio.
Sabemos que a floresta tem um papel fundamental no combate à erosão do solo. Eis o que nos diz o Eng. Victor Louro, responsável pelo Plano de Combate contra a Desertificação no Nordeste Algarvio, a propósito, justamente, das elevadas densidades, no seu livro “A floresta em Portugal” (2016), da Editorial Gradiva (p.234):
– O coberto arbóreo protege o solo através de uma manta viva, isto é, de matos que nascem e crescem numa floresta relativamente aberta, não muito densa,
– A instalação da floresta pode ser obtida com uma baixa mobilização do solo,
– Uma correta instalação e gestão permite um controlo adequado do escoamento superficial das águas, poupando mais uma vez o solo,
– As técnicas de extração do material lenhoso e cortiça devem ter em conta a necessidade de não compactar o solo, usando equipamento adequado para não abrir rastos que venham a ser outros tantos barrancos de escorrimento das águas.
– A chamada limpeza dos matos feita de qualquer maneira e levando tudo à sua frente é um erro crasso por não alimentar, justamente, a manta morta.
Quer dizer, com uma silvicultura mais aberta e policultural, teria sido possível conservar e, porventura, melhorar a multifuncionalidade da economia agro-florestal do Nordeste Algarvio, onde também se inclui, por exemplo, um maior equilíbrio por via da recolonização da azinheira e a instalação de pastagem biodiversa para os pequenos ruminantes.
Todavia, a descapitalização das famílias, o envelhecimento acelerado e a degradação do capital simbólico a que não é alheio o “abandono do Nordeste” não consentiram que tal acontecesse.
3. Os próximos vinte anos
Estamos em 2016, passaram vinte anos, estão a terminar as compensações ao rendimento concedidas ao abrigo do regulamento comunitário 2080.
Temos hoje uma economia agro-florestal digna desse nome?
Temos hoje uma multifuncionalidade e pluriatividade dignas desse nome?
Interrompemos o círculo vicioso de desertificação e despovoamento?
Ao menos, “turistificámos” o interior remoto e o Baixo Guadiana?
Em matéria de cooperação transfronteiriça, fizemos progressos dignos desse nome?
Já temos a navegabilidade do Guadiana assegurada até Alcoutim?
Infelizmente, fizemos apenas “política de mitigação” e não podemos afirmar que invertemos a tendência longa do Nordeste Algarvio.
Nos próximos vinte anos, as medidas agro-ambientais e agro-florestais no Nordeste Algarvio continuam a fazer sentido, por maioria de razão devido às alterações climáticas, mas precisam de ser reenquadradas num outro modelo de desenvolvimento da sub-região, um modelo que abranja todo o Baixo Guadiana e que recupere a multifuncionalidade agrossilvopastoril, por via de uma nova geração de “pagamentos ambientais ou ecossistémicos”.
Sem esta associação entre “multifuncionalidade e pagamento de serviços” será o definhamento inelutável do Nordeste Algarvio.
A terminar, deixo aqui alguns tópicos de uma política de desenvolvimento para o Nordeste Algarvio e o Baixo Guadiana.
O Nordeste Algarvio precisa de alguns “embaixadores” para poder reescrever o seu futuro:
– dois ou três ícones histórico-culturais,
– dois ou três percursos de natureza de grande qualidade,
– dois ou três produtos de marca de elevada qualidade,
– duas ou três boas práticas de economia circular,
– dois ou três endemismos florísticos ou faunísticos para observação,
– dois ou três eventos de grande prestígio,
– duas ou três residências permanentes de natureza artística e/ou científica,
– um ator-rede que esteja sempre presente e que faça a reticulação do conjunto.
Nota Final
Para fazer tudo isto, o Nordeste Algarvio precisa de regressar à agrossilvopastorícia de uso múltiplo, para levar a cabo algumas agriculturas de nicho, precisa de ser exemplar nos domínios da economia verde e economia circular, em especial no cultivo de pastagens biodiversas, tendo em vista a criação dos pequenos ruminantes, mas, também, a regeneração dos solos, precisa de uma ação-piloto exemplar, tendo em vista o combate contra as alterações climáticas, precisa de valorizar diversas modalidades de turismo rural ao longo do Guadiana e da marginal do Guadiana, precisa, finalmente, porventura decisivamente, de um programa sólido de “pagamentos ambientais e ecossistémicos” por serviços prestados à natureza, ao ambiente e à paisagem.
Precisa de um ator-rede e de inteligência coletiva territorial.
Não sendo assim, receamos o pior.
Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas