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Crónicas do Sudoeste Peninsular (XI): A modernidade líquida – Uma pequena homenagem a Zygmunt Bauman

Zygmunt Bauman, o filósofo e sociólogo da “modernidade líquida” faleceu no passado dia 9 de Janeiro, com 91 anos. Aqui lhe prestamos uma singela mas sentida homenagem.

Zygmunt Bauman nasceu em 1925, na Polónia, de origens judias. Durante a 2ª grande guerra a família fugiu do nazismo para a União Soviética. Depois da guerra, regressou à Polónia mas as críticas ao governo comunista polaco valeram-lhe uma perseguição politica e, em 1968, refugiou-se em Israel onde lecionou na Universidade de Telavive.

Crítico do sionismo partiu de novo e, em 1971, aceitou um lugar de professor de sociologia na Universidade de Leeds em Inglaterra.

Zygmunt Bauman é um homem do seu tempo e todos os grandes temas de atualidade mereceram a sua atenção que, de resto, está bem refletida em cerca de meia centena de obras publicadas. Bauman é conhecido por ser o filósofo da “modernidade líquida”, uma metáfora para o estado da nossa condição humana: tudo é volátil, efémero, precário, transitório, passageiro, instável, temporário, fluido, enfim, líquido.

No plano teórico-filosófico, a passagem do conceito de estrutura (sólido) para o conceito de rede (conexão) dá bem conta dessa transição. E estas noções líquidas e fluidas têm aplicação em todas as áreas, desde as relações amorosas e familiares, até às relações de poder nos campos da economia, da sociedade, da política e da revolução digital. É esta grelha de leitura transversal dos problemas contemporâneos que dá sentido, consistência e densidade aos seus escritos filosóficos e sociológicos e, bem assim, às suas inúmeras intervenções sociais e culturais.

Zygmunt Bauman é, também, conhecido por ser um filósofo do pessimismo pós-moderno bastando, para tal, observar alguns títulos das suas obras mais recentes: Estranhos Batendo à Porta (2016), Estado de Crise (2016), Cegueira Moral (2016), Amor Líquido (2008), A Vida Fragmentada (2007), Modernidade e Ambivalência (2007), Confiança e Medo na Cidade (2006), todas publicadas em Portugal pela Editora Relógio d´Água. Os outros títulos em português estão praticamente todos publicados pela Editora Zahar, no Brasil. Por exemplo, na temática da “modernidade líquida”, contam-se os títulos Vida Líquida, Tempos Líquidos, Violência Líquida, Medo Líquido e a Cultura no Mundo Líquido.

Os tópicos de reflexão que mereceram mais a sua atenção foram os seguintes: as desigualdades sociais do capitalismo e as fraudes do neoliberalismo (no livro, A riqueza de poucos beneficia todos nós?), a perda do sentido de comunidade num mundo híper-individualizado (no livro, A Cegueira Moral), a crise do estado e o colapso da confiança (no livro, Estado de Crise), a imigração e os refugiados (no livro, Estranhos Batendo à Porta), a revolução digital, a debilidade das redes sociais e dos movimentos de indignados, os trabalhadores precários (em inúmeras entrevistas nos últimos anos).

Os valores éticos são um traço comum e dão sentido a todo o pensamento de Zygmunt Bauman. No livro a Cegueira Moral pode ler-se: “Uma insensibilidade moral induzida e manipulada torna-se uma compulsão, quase uma segunda natureza, e as dores morais vêm-se desprovidas do seu papel salutar de prevenir, alertar e mobilizar” .

As suas tomadas de posição mais recentes em matéria de cultura digital, redes sociais e movimentos sociais de protesto são igualmente reveladoras da sua “modernidade líquida”. Eis algumas afirmações de Zygmunt Bauman retiradas de entrevistas recentes em órgãos de comunicação social e agora trazidas ao conhecimento do grande público no momento do seu falecimento:

– As redes sociais são uma armadilha, podemos ter 500 amigos sem sair de casa, tudo parece muito fácil na esfera virtual, mas perdemos a arte das relações sociais e da amizade;

– O velho limite sagrado entre o horário de trabalho e o tempo pessoal foi ultrapassado, estamos permanentemente disponíveis, esquecemos o tempo para o amor, a amizade e a solidariedade; hoje discute-se, mesmo, o “direito de desligar” fora das horas de trabalho;

– O activismo de sofá e as comunidades online são um entretenimento barato, é preciso confirmar e validar esse empenhamento na rua, no contacto com as pessoas e e nas comunidades reais offline.

No que diz respeito ao descrédito da política e aos movimentos de indignados e trabalhadores precários pode ler-se:

– Uma coisa é o protesto, outra muito diferente é a ação política consequente;

– Foi uma catástrofe arrastar a classe média para a precariedade, o conflito não é já entre classes, é de cada um com a sociedade;

– As pessoas não acreditam no sistema democrático porque ele não cumpre as suas promessas; ao mesmo tempo, a principal vítima desta desigualdade que não cessa de crescer será a democracia, porque a chamada economia de mercado livre contradiz e põe a ridículo as promessas dos políticos;

– No que diz respeito aos trabalhadores precários e aos indignados, eles não têm uma identidade fundada no trabalho e a sombra do futuro não paira sobre eles; para a sobrevivência do Estado-nação a consequência é que no futuro mais ou menos próximo todas as sociedades serão uma colecção de diásporas.

 

Notas Finais

A terminar, em jeito de síntese, quatro pequenas notas breves acerca do pensamento eclético de Zygmunt Bauman.

Em primeiro lugar, o divórcio manifesto entre a política (local) e o poder (global), isto é, enquanto a política é doméstica e está territorializada, o poder é global e extra-territorial. Perante isto, o Estado-nação, tal como o conhecemos, é impotente. O poder real está fora das fronteiras nacionais. A democracia doméstica não convence, é pouco efectiva e é arrastada por esta crise do Estado-nação.

Em segundo lugar, a democracia doméstica só agora aprende a lidar com o universo digital mas as contradições são inúmeras. As comunidades virtuais online também são extra-territoriais e não se identificam com as antigas comunidades reais offline.

A cultura conectada é uma bricolage permanente, muitas vezes é uma verdadeira caricatura, o discurso público é retórica pura e o espaço público está muito fragmentado para ser representativo e eficaz.

Em terceiro lugar, a filosofia e a sociologia de Zygmunt Bauman são uma filosofia e sociologia da vida quotidiana onde a sensibilidade, a empatia e a felicidade são muito mais importantes do que a pureza teórica e metodológica. No seu ecletismo, a sua sociologia busca reconstruir todas as camadas da realidade e tornar a sua linguagem acessível a todos os tipos de leitor.

Última nota, Zygmunt Bauman está muito preocupado com a distração e, portanto, com a “economia da atenção” ou com o “foco da atenção”. O acesso fácil e rápido ao oceano de informação que a internet e os motores de buscam proporcionam é uma verdadeira armadilha e deve ser tomado com conta, peso e medida. Perante tantos fragmentos de informação não admira que aconteçam crises de impaciência e muita irritação. É outra faceta da modernidade líquida.

Finalmente, enquanto professor universitário e leitor frequente de Zygmunt Bauman não posso deixar de sugerir aos leitores a leitura da obra deste grande filósofo da modernidade. Faço votos para que a Editora Relógio d`Agua reedite em 2017 toda a sua obra em Portugal.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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