A sociedade global, digital e cosmopolita em que vivemos deixa prenunciar mudanças culturais e civilizacionais de grande alcance durante o século XXI.
Lembremos essas mudanças: as alterações demográficas e os problemas específicos das sociedades seniores, as alterações climáticas e os problemas de abastecimento local e segurança alimentar, as alterações dos mercados de trabalho e o desemprego estrutural de dois dígitos nas faixas etárias mais jovem e mais velha, os riscos geopolíticos globais próprios de um mundo multipolar e os recursos crescentes despendidos em cooperação e segurança internacionais para controlar e mitigar o risco sistémico e moral dos atores nele envolvidos.
Finalmente, nos últimos anos, emerge um grande desafio sob a forma de uma nova economia associada ao universo das tecnologias da informação e comunicação, às plataformas digitais e às redes sociais.
I. A emergência da (i)conomia e da sociedade colaborativa
É no interior deste complexo enquadramento global e tecnológico que emergem novas correntes de pensamento e geografias económicas mais inteligentes e imateriais associadas à internet e à tecnologia das redes e plataformas digitais.
São movimentos muito recentes, liderados pelas gerações que se movem à vontade no ecossistema tecnológico próprio dos sistemas interativos de comunicação web 2.0 e web 3.0.
A culminar esta pluralidade de correntes do pensamento em redor de uma economia das redes e dos recursos imateriais temos a revolução silenciosa da economia dos bens comuns colaborativos (Jeremy Rifkin, 2014), se quisermos, uma espécie de quarto setor pós-capitalista que cresce e alastra na zona de interface entre a economia pública das infraestruturas e dos bens e serviços públicos mais convencionais, a economia social e solidária das instituições particulares de assistência social e a novel economia dos bens comuns colaborativos.
Nesta linha de argumentação, a “Sociedade Co” é a sociedade do conhecimento, colaboração, comunicação, comunidade, comunhão, isto é, a sociedade dos comuns, mas, também, da cooperação, confiança, contribuição, convivialidade e congratulação.
O universo “Co” contempla uma gama muito variada de bens e serviços comuns: os consumos colaborativos de recursos ociosos (sharing idle resources), a produção social pelos pares (peer to peer production), os serviços partilhados pelas comunidades de utilizadores (sharing economy), o financiamento participativo (crowdfunding), os espaços comuns de criação criativa (coworking e makerspaces), a aprendizagem e a formação colaborativas (opensourcing), as moedas criativas e complementares (local currencies e creative money), entre outros empreendimentos da chamada economia colaborativa e contributiva (collaborative ou contributive economy).
Para dar conta do crescimento exponencial da economia colaborativa nos últimos anos, e sobretudo após a grande crise de 2008, citamos os autores que mais contribuíram para essa emergência. Manuel Castells (a era da informação, a sociedade em rede e o poder da identidade), Yochai Benkler (a riqueza das redes ou como a produção social transforma os mercados e a liberdade), Lawrence Lessig (a cultura livre e o código versão 2.0), Michel Bauwens (a economia política da produção social pelos pares), Pierre Levy (a inteligência colectiva e a cibercultura), Rachel Boltsman (a economia partilhada e o consumo colaborativo), Lisa Ganski (a economia mesh ou partilhada), Bernard Stiegler (a economia contributiva), André Gorz (o trabalho imaterial), Howard Rheingold (comunidade virtual e smart mobs), Clay Shirky (o excedente cognitivo ou a criatividade numa era conectada), Don Tapscott (a wikinomics ou como a colaboração em massa muda tudo), Chris Anderson (a cauda longa, os makers e a nova revolução industrial) e Jeremy Rifkin (a 3ª revolução industrial e a sociedade do custo marginal zero), entre outros autores.
Qual é a substância ou estrutura comum a este movimento polissémico mas convergente? Infraestruturas de banda larga ou autoestradas da informação, cultura digital disseminada, start-ups e plataformas tecnológicas, redes sociais e sistemas de comunicação interactivos, programação e software opensource e modelos de negócio abertos.
Ao contrário das grandes transições civilizacionais anteriores, da oralidade para a escrita e da escrita para a imprensa, feitas sempre no universo dos átomos e moléculas, a transição da imprensa para a computação e as redes, para o mundo dos screenagers, é feita dos átomos para os bits, isto é, estamos a desmaterializar a próxima grande mutação civilizacional e a eliminar em boa medida as referências espácio-temporais anteriores.
É assim que os novos modelos de negócio da era e da cultura digitais exprimem cada vez mais esta mutação fundamental.
Numa mutação onde as plataformas tecnológicas desempenham o papel principal, pois são a placa giratória de todos os interesses em presença, estamos a assistir à transição paradigmática da sociedade dos objetos e das mercadorias para a sociedade dos ícones, dos signos, sinais e símbolos, isto é, a uma transição para a (i)conomia.
Na nova sociedade da informação, da inteligência, da internet, da imaginação, da inovação, dos bens intangíveis e imateriais, assistiremos a um trade off permanente entre a “velha economia dos produtos industriais e materiais” e a “nova iconomia dos serviços imateriais”, numa troca constante entre produto e serviço e entre propriedade e acesso e na qual a (i)conomia acrescentará cada mais valor à economia convencional que se reduzirá do mesmo passo.
II. O mundo do trabalho e o homem dos sete ofícios
Face a este novo ecossistema da era digital, pode legitimamente perguntar-se: quem será o homem do tempo novo que se avizinha, o homem das redes e dos écrãs, da (i)conomia e da “Sociedade Co”?
Vejamos as tendências pesadas, sobretudo no campo dos países do chamado mundo ocidental.
Em primeiro lugar, por razões de competitividade, a economia pública reduzirá a despesa pública para poder reduzir os impostos. Pelo meio reduzirá o emprego público, substituindo funcionários públicos por prestadores de serviços em outsourcing.
Em segundo lugar, a economia social e solidária passará por uma forte racionalização e contração na medida em que depende dos subsídios públicos. Pelo meio reduzirá o emprego social e muitas das suas funções serão externalizadas para as comunidades locais da Sociedade “Co”.
Em terceiro lugar, a economia privada capitalista, devido à automatização e à concorrência feroz dos mercados globais, reduzirá ainda mais o emprego convencional e externalizará muitas tarefas que passarão a ser oferecidas pela economia on-demand para onde se transferirão muitos trabalhadores em regime de freelance.
Em quarto lugar, a economia “Co”, em sentido amplo, será uma espécie de lugar geométrico de todas as externalidades, positivas e negativas, das várias economias.
Nesta enorme placa giratória, o mais importante é mesmo a adesão aos valores “Co”. Se essa adesão for sincera e entusiástica, a “Sociedade Co” será muito provavelmente a grande casa comum para a maioria dos cidadãos.
Nesta “Sociedade Co” circularão, muito provavelmente, para além da moeda oficial, várias moedas locais e criativas.
No final, não surpreenderia que este “cidadão multifunções” e adepto dos bens comuns colaborativos acumulasse rendimentos, monetarizados e não-monetarizados, com diversas proveniências, a saber: um emprego em part-time num serviço público e/ou numa empresa privada, uma prestação de serviço em regime de freelance numa empresa on-demand, algumas horas num banco do tempo local em troca de um voucher e, finalmente, uma “inscrição” numa startup colaborativa de uma parte dos seus recursos ociosos (idle resources) em troca de uma receita eventual.
Como facilmente se comprova, estaremos num futuro não muito longínquo, devido à quebra estrutural do emprego, condenados a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime contributivo e colaborativo, sob muitos formatos, condições e reputações, se quisermos, uma sociedade onde o individuo “se produz a si próprio” numa espécie de corporate individualisme.
Estamos em crer que regressaremos ao “homem dos sete ofícios” que o capitalismo industrial tinha desconstruído para construir o profissional especializado do capitalismo industrial da nova era. E porquê novamente o “homem dos sete ofícios” na era da internet?
Em primeiro lugar, porque a auto-formação, oferecida em Opensourcing, estará muito próxima do custo marginal zero.
Em segundo lugar, porque a escassez de empregos obrigará a repartir os horários de trabalho e a oferecer um leque mais diversificado de oportunidades.
Em terceiro lugar, porque todo o mercado de trabalho se tornará muito mais volátil e adaptativo.
Em quarto lugar, por que se tornará absolutamente imprescindível a complementaridade de rendimentos, monetarizados ou não.
Em quinto lugar, porque as atividades da economia colaborativa e contributiva permitirão ensaiar novas experiências, novos saberes e novas ocupações.
Quer dizer, através da economia colaborativa e contributiva, as diferentes comunidades de utilizadores e fornecedores organizarão novos formatos de prestação de serviços com suporte em plataformas tecnológicas, cujas aplicações informáticas serão instaladas nos telefones móveis dos jovens e menos jovens que desejam entrar no “mercado de trabalho”.
É aqui que entra, progressivamente, “o homem dos sete ofícios”. De acordo com as suas faculdades, capacidades e experiências ele irá inscrever-se em diferentes “aplicações”, geridas muito provavelmente por uma start-up tecnológica recém constituída, nas modalidades horário, tempo de trabalho, pagamento, qualidade de serviço, que a sua “presumida reputação” lhe permitir oferecer.
Poderão ser sete ofícios, mais ou menos, mas dificilmente serão sete profissões. Entretanto, enquanto aguarda por uma chamada, poderá continuar, em sua casa, a formação permanente num MOOC (massive open online course) a custo zero.
É o maravilhoso mundo novo que chega!!!
Nota Final
Dito isto, e doravante, em matéria laboral e no espaço público, os termos da discussão serão os seguintes:
– polarização e bipolarização do mundo do trabalho,
– fracionamento dos horários e do tempo de trabalho,
– intermitência e descontinuidade das relações laborais,
– empregabilidade e formação ao longo da vida,
– polivalência e multifuncionalidade das competências pessoais,
– um direito universal de proteção social em vez de um simples direito sócio-laboral,
– um direito de pluriatividade horizontal em vez de um simples direito laboral,
–
um direito fiscal que tenha em devida conta o plurirrendimento e a pluriatividade,
– um direito comercial que tenha em devida conta a intermitência e o trabalho independente,
– finalmente, emergirá no debate público a discussão em redor do conceito de rendimento básico universal e/ou incondicional.
Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas