Está em curso um processo paradigmático de globalização assimétrica, isto é, o global corre muito mais velozmente do que o local, a desterritorialização muito mais depressa do que a reterritorialização, a deslocalização muito mais célere do que a relocalização. O estado da arte nesta matéria é muito complexo. No entanto, uma nova cultura rural pós-agrícola ou pós-convencional, está a chegar por vias muito diversas:
– novos valores sócio-culturais desencadeiam novas procuras e nichos de mercado,
– a frequência, intensidade, gravidade e visibilidade dos problemas ambientais faz surgir novos movimentos sociais e uma nova consciência ambiental que obrigam as autoridades a agir,
– as atividades de recreio e lazer promovem a redescoberta dos territórios e as suas potencialidades, mesmo os mais longínquos,
– a investigação biotecnológica e agroecológica abre um novo leque de possibilidades para as zonas rurais mais desfavorecidas,
– os mecanismos regulatórios e regulamentares acabam, também, à sua maneira, por segmentar os mercados e abrir novas possibilidades,
– a chegada de novos atores por via de uma crescente economia residencial é uma oportunidade para captar novos empreendedores agro-rurais,
– as alterações climáticas e os novos mercados do carbono, da biodiversidade, da água, são uma fonte de oportunidades para os territórios primários e as zonas rurais mais desfavorecidas.
Os grandes princípios desta nova ruralidade pós-agrícola também já são nossos conhecidos:
– é necessário pensar global e agir local, ser glocal.
– é necessário aumentar a diversidade para reduzir a desigualdade,
– é necessário baixar a intensidade para melhorar a qualidade,
– é necessário produzir mais e melhor com menos recursos,
– é necessário reduzir, reciclar e reutilizar matérias-primas e recursos naturais,
– é necessário regular o fluxo para não delapidar o stock de recursos,
– é necessário reticular as iniciativas para aumentar a capilaridade do território,
– é necessário valorizar a identidade sem cair na moda identitária,
– é necessário valorizar as externalidades positivas e sancionar as negativas.
Neste contexto geral, irá emergir uma nova geração de produtos e serviços que aqui designamos de produtos glocais. Vejamos, agora, algumas características dos produtos glocais amigos do mundo rural e da economia local.
1. Os produtos de proximidade ou a importância da formação de uma economia local
Os produtos glocais são produtos de proximidade. A proximidade é um valor que é necessário redescobrir em termos de economia local ou, mais rigorosamente, de formação de um sistema produtivo local.
Não se trata aqui de levar a efeito a autarcia económica local, mas, antes, de não desistir prematuramente apenas porque o território local não tem a dotação de fatores que lhe permita produzir nas condições de preço do mercado mundial.
Infelizmente, a investigação económica relegou para plano secundário, ou abandonou mesmo, o estudo sobre a microgeoeconomia dos sistemas produtivos locais.
Sabemos que a formação de uma economia local aumenta a identificação dos cidadãos com o seu território e esta motivação territorial ajuda a criar capital produtivo, social e simbólico, cuja fragilidade, porém, nem sempre é entendida pelo quadro institucional, legal e fiscal em vigor.
Isto é, criam-se custos de contexto absolutamente desproporcionados que acabam por empurrar as micro-iniciativas para a economia clandestina.
Os produtos de proximidade deixam as mais-valias na economia local que são, em princípio, reinvestidas no fortalecimento dessa mesma economia. Os produtos glocais certificam os sistemas produtivos locais e os lugares onde ocorrem.
2. Os produtos limpos e justos ou a importância da segurança alimentar e do comércio justo
Os produtos glocais são produtos limpos e justos. Limpos, não apenas porque devem ter baixa intensidade agroquímica, mas limpos, também, porque devem ser produtos justos e fazer parte do comércio justo.
No primeiro caso, estamos a privilegiar e a preferir produtos em modos de produção agroecológicos nas suas várias modalidades.
No segundo caso, estamos a privilegiar e a preferir produtos que não pratiquem a discriminação, seja por práticas de concorrência desleal e métodos abusivos e obscuros de “dumping” social, ambiental e fiscal ou, ainda, de apropriação indevida de mais-valias formada em circuitos longos e especulativos.
Sabemos que a cultura económica dominante se rege, desde sempre, pelo princípio básico de privatizar o benefício e socializar o prejuízo.
A teoria é simples: condicionar e influenciar a maioria silenciosa dos contribuintes e consumidores, apostando na sua baixa capacidade de organização e procurando convencê-los de que a socialização dos problemas sociais e ambientais tem um impacto “low cost” na estrutura fiscal.
Nesta estratégia de condicionamento, omite-se o essencial, a saber, que há outras opções em termos de organização do sistema económico, mais limpas e mais justas e de menor intensidade fiscal.
É preciso, pois, dizer claramente que há uma relação direta entre produtos sujos e injustos e carga fiscal, ou seja, que as consequências ambientais e de saúde pública têm uma tradução pesada em termos de carga fiscal.
Por isso, teremos de decidir se queremos uma economia curativa de elevada carga fiscal, porque socializa os prejuízos e privatiza os benefícios, ou uma economia preventiva de baixa carga fiscal, assente em produtos limpos e justos, sendo certo que esta opção não é indiferente do ponto de vista dos ganhadores e perdedores em termos de sociologia política interna.
Os produtos glocais certificam e asseguram uma baixa intensidade fiscal porque reduzem e contrariam a socialização dos prejuízos.
3. Os produtos autóctones ou a importância da conservação e biodiversidade
Os produtos glocais são, em primeira instância, produtos autóctones ou produtos que integram recursos endógenos com elevado valor acrescentado e que, por esse facto, são socialmente e comercialmente conhecidos e valorizados.
Neste sentido, e para formar o sistema produtivo local, é imprescindível que a investigação económica e ecológica diga de que forma e com que intensidade devem os recursos genéticos e biológicos ser utilizados pela produção. A biodiversidade é, de certa forma, o derradeiro recurso de um território, porém, a conservação e a biodiversidade não se realizam em santuários ecológicos ou naturais.
Ao contrário, é o sistema produtivo local, pela criação de agroecossistemas por exemplo, que melhor protege esses recursos, tanto mais quanto a conservação e a biodiversidade são atributos que, de forma crescente, criam valor comercial aos produtos que respeitam e preservam esses valores.
Recuperar as sementes perdidas, as tecnologias tradicionais e os saberes ancestrais é criar identidade e motivação territorial para novas iniciativas.
Assim se constrói, por pequenos passos, o sistema produtivo local, assim se respeita os direitos de propriedade de uma região e, assim, também, se pode reinvestir as mais-valias geradas por estes recursos.
Os produtos glocais certificam a importância das atividades de conservação e biodiversidade como atividades imprescindíveis à produção e aos agroecossistemas.
4. Os produtos de baixa intensidade energética ou a importância da economia energética local
Os produtos glocais são produtos de baixa intensidade energética. A energia com base nos combustíveis fósseis é uma forma muito centralizada de energia, produzida em quase monopólio e cada vez mais cara.
Mais uma vez, a investigação eco-energética deve providenciar informação pertinente sobre os vários sistemas combinados e descentralizados de microgeração, a sua viabilidade económica e a sua conexão com os recursos endógenos locais renováveis.
No mesmo sentido, devemos perguntarmo-nos qual o papel dos recursos agro-florestais no desenho da economia energética local em particular e no sistema produtivo local em geral, de modo a promover a complementaridade e a integração das utilizações e evitar conflitos de usos dos solos e dos recursos.
Os produtos glocais são produtos certificados por adoptarem processos de transformação de baixa intensidade energética.
5. Os produtos de baixa intensidade hídrica ou a importância da economia da água
Os produtos glocais são produtos de baixa intensidade hídrica. A água é um recurso escasso com um custo de exploração crescente, por isso, é imprescindível reduzir o peso relativo deste fator na estrutura de custos da empresa agroflorestal e alimentar.
Os objetivos a atingir são a poupança, a eficiência, a reciclagem e a recolha de águas pluviais.
Os produtos glocais requerem circuitos curtos de distribuição de água e são produtos certificados por adotarem processos de transformação de baixa intensidade hídrica.
6. Os produtos de baixo índice de mobilização ou a importância de uma boa regeneração do solo agrícola
Os produtos glocais são produtos de baixo índice de mobilização do solo agrícola. Não se trata apenas de reduzir os índices e os custos de mecanização, mas, também, de converter a agricultura convencional aos métodos agroecológicos de mobilização mínima e sementeira direta, tendo em vista reduzir a exposição do solo aos fatores agressivos de erosão de diversa natureza.
Estamos perante um corolário lógico do princípio de sustentabilidade dos recursos naturais do solo, suporte da vida por onde circulam os materiais e nutrientes necessários ao crescimento dos agroecossistemas.
Os produtos glocais são produtos certificados por adotarem processos produtivos de baixa intensidade de mobilização do solo.
7. Os produtos de ciclo fechado ou a importância de uma boa gestão de internalidades
Os produtos glocais são produtos de ciclo fechado, isto é, os seus resíduos são considerados “internalidades” do processo de transformação e incorporados no sistema produtivo corrente.
Este sistema produtivo tem uma dimensão estratégica da maior importância, uma vez que o “ciclo fechado” obriga a reconsiderar as opções tecnológicas realizadas, no sentido de uma maior proximidade com o funcionamento dos sistemas naturais do ecossistema onde se localiza.
Não obstante o paradoxo aparente, do “ciclo fechado” faz também parte a produção de externalidades positivas sobre a economia local e a qualidade de vida das comunidades respetivas.
Os produtos glocais são produtos certificados por adotarem processos de transformação de ciclo fechado sem resíduos.
8. Os produtos amigos da paisagem ou a importância de uma boa gestão do mosaico paisagístico
Os produtos glocais são produtos que realizam uma gestão global da paisagem, isto é, são paisagens globais. Quanto maior a variedade dos elementos que constituem a paisagem maior o número de funcionalidades e ligações do mosaico paisagístico e maior o grau de autossuficiência dos agroecossistemas respetivos.
A paisagem é uma internalidade do processo produtivo, mas deve ser devolvida à origem, sob a forma de uma externalidade positiva, isto é, como paisagem de valor acrescentado.
Os produtos glocais são produtos certificados paisagisticamente por adotarem processos de transformação que atestam as boas práticas de gestão do mosaico paisagístico.
9. Os produtos com intensidade de rede ou a importância da formação do capital social
Os produtos glocais são produtos com elevada intensidade de rede, isto é, são geradores de capital social.
Quer dizer, os produtos glocais não são independentes ou indiferentes às relações sociais que implicam. Falamos da criação de estruturas associativas, de relações institucionais, de medidas ativas de criação de emprego, de relações comunitárias e formação de mercados locais, de mobilização de jovens para o empreendedorismo agro-rural, enfim, de criação de novos fatores de atratividade para os territórios rurais.
Os produtos glocais são produtos certificados por adotarem processos sociais com elevada intensidade de rede e contribuírem para renovar o capital social dos territórios onde ocorrem.
10. Os produtos com identidade ou a importância da formação do capital simbólico
Os produtos glocais são produtos com identidade, isto é, são portadores de atributos fundamentais do território e geram identificação e motivação, pois são ou devem ser uma imagem genuína desse território.
Podemos ver ou ler a história local através dos produtos glocais, eles carregam passado, presente e futuro, desde as sementes e as espécies ameaçadas, os saberes e as tecnologias tradicionais, até às imagens de marca e “marketing” do futuro.
Por esta via, os produtos glocais são veículos de comunicação simbólica com o exterior da região, promovem os seus produtos, são os embaixadores singulares de um território.
Os produtos glocais são produtos certificados culturalmente por incorporarem elementos simbolicamente relevantes e contribuírem decisivamente para a afirmação exterior de uma região.
Conclusão
Os produtos glocais são a dimensão biofísica e agroecológica das reservas estratégicas de um país, em especial, os produtos mais emblemáticos das suas áreas de paisagem protegida e zonas rurais mais desfavorecidas.
Eles são a representação por excelência do novo mundo rural em formação, mais aberto e cosmopolita, mas, também, mais nostálgico e tradicionalista.
Tudo leva a crer que serão produtos paradoxais, uma mistura de passado, presente e futuro, nos limites da tecnologia da imaginação agroecológica e alimentar.
Entre a agricultura e a agrocultura, eis onde nos encontramos. A vocação turística do país e a turistificação do mundo rural português aguardam ansiosamente por esta pequena revolução agrocultural. Com conta, peso e medida.
Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas