Voltamos à temática da Dieta Mediterrânica, para referir alguns problemas relativos à sua rede de suporte territorial.
Como sabemos, a estruturação da economia algarvia no último meio século, pelo menos, ocorreu ao longo de quatro linhas paralelas:
– A linha de costa que inclui o litoral e a área de paisagem protegida da Ria Formosa;
– A linha urbana que acompanha a Estrada Nacional (EN) 125 e que inclui os núcleos urbanos em seu redor, assim como a chamada agricultura periurbana, que é, em boa medida, hoje, uma agricultura intensiva e forçada;
– A linha do barrocal, do rural algarvio mais tradicional, que acompanha, por exemplo, a EN270 e que inclui a agricultura tradicional algarvia, em especial o chamado pomar tradicional de sequeiro;
– A linha serrana que acompanha, por exemplo, a EN124 e a EN2 e que inclui a economia florestal e os produtos derivados da floresta, a economia do montado assim como a economia cinegética.
A história recente é, por demais, conhecida. Devido à hegemonia crescente da economia do imobiliário, nas suas diversas modalidades turísticas e residenciais, o espaço entre a linha de costa e a linha da EN125 foi sendo capturado para a atividade imobiliário-turística, tendo como consequência a fragmentação da propriedade rústica, a profusão de equipamentos e infraestruturas e, portanto, a inviabilização económica de muitas explorações agrícolas tradicionais, que revestiam características multifuncionais adequadas ao ecossistema mediterrânico algarvio.
Esta pulverização da propriedade rústica e da exploração agrícola tradicional coincidiu, por um lado, com o definhamento do movimento associativo e cooperativo regional e, por outro, com a emergência de um setor comercial muito heterogéneo, de onde emergem as superfícies comerciais, de todas as dimensões, que impuseram regras mais severas de produção e comercialização à economia agroalimentar da região.
O modelo de funcionamento da economia regional
A velocidade de implantação do “novo modelo hegemónico de negócio regional” não deixou tempo para conceber e praticar uma verdadeira política de desenvolvimento agrícola e rural na região, não obstante o volume de ajudas que foram chegando por via da PAC. Basta dizer que não existe na região uma associação de agricultura e agricultores que seja digna desse nome.
Para este panorama ficar mais completo, devemos, ainda, juntar o agente comercial intermediário que, nos interstícios da pequena economia local, continuou a fazer os seus negócios de oportunidade, tirando vantagem das evidentes fragilidades financeiras e comerciais da agricultura familiar, dominante no rural tradicional algarvio.
Acrescente-se, finalmente, a desorganização do mercado de trabalho local, em consequência da sazonalidade do mercado turístico, mais agressivo e mais atrativo.
Esta relação desigual, económica e comercial mas, também, interprofissional e contratual, conduziu a uma descapitalização da agricultura familiar algarvia e, com o tempo, ao seu recuo para a economia informal e, mesmo, ao abandono de muitas pequenas propriedades, ao mesmo tempo que se reduzia substancialmente a sua relação paisagística e ecossistémica com os recursos naturais locais da região.
E tudo isto sem prejuízo, evidentemente, de algumas ilhas de modernização agrícola, sobretudo nos setores hortofrutícola e dos citrinos.
As quatro linhas paralelas que referimos criaram, nos seus interstícios, pequenas economias paralelas que mal comunicavam entre si. A falta de reticulação destes quatro segmentos da economia algarvia e a relação desigual entre o setor associativo da produção e o setor empresarial da comercialização e do retalho deram origem a uma economia agrária regional muito vulnerável e a uma economia rural muito sensível a estes fortes movimentos de desestruturação social e territorial.
Os sinais mais evidentes estão à vista:
– Terrenos agrícolas expectantes à espera de valorização urbana;
– A desorganização dos mercados de trabalho do rural tradicional algarvio, trocados por trabalho sazonal nos setores mais dinâmicos;
– Uma agricultura intensiva e forçada, onde predomina o trabalho familiar intergeracional, a pluriatividade e o plurirrendimento, mas com pouca vocação associativa;
– As cadeias de produção locais, curtas e de reduzido valor acrescentado, são esmagadas pelas margens comerciais;
– Uma boa parte da economia local depende de canais de comercialização que estão nas mãos de intermediários transportadores;
– A degradação do património rural imaterial local e regional, por exemplo, da paisagem mediterrânica à arquitetura rural do barrocal-serra algarvio e o abandono de muitas propriedades rústicas e pequenas explorações familiares.
O que fazer neste contexto e nestas circunstâncias?
– Em primeiro lugar, abrir pontos de passagem entre estas quatro linhas paralelas da economia algarvia, criando, por via dessa fertilização, uma nova inteligência territorial;
– Em segundo lugar, criar cadeias de valor em que as atividades tradicionais da economia algarvia sejam penetradas pelas artes e pela cultura, isto é, fazer da patrimonialização, material e imaterial, uma nova fonte de riqueza, por via das atividades criativas e culturais;
– Em terceiro lugar, inovar e criar uma nova linha de “produtos e serviços estruturados”, com um design do produto e um marketing mais arrojados;
– Por fim, disseminar estes benefícios de contexto através da reticulação dos pontos de apoio de uma rede de suporte à Dieta Mediterrânica, sejam micro-redes territoriais, redes temáticas ou territórios-rede com mais músculo e sistema nervoso.
Abordemos, por agora, este último aspeto, a rede de suporte territorial da dieta mediterrânica.
Uma rede de suporte territorial da Dieta Mediterrânica
No que diz respeito à aplicação prática de um plano de inventariação, salvaguarda e promoção da Dieta Mediterrânica, é fundamental a construção de uma rede de suporte à dieta mediterrânica, que pode assumir várias geometrias e naturezas, desde uma micro-rede local muito circunscrita, a uma rede de natureza temática e a um território-rede de âmbito mais alargado.
Uma micro-rede pode justificar-se para resgatar uma “semente perdida ou um produto autóctone” em risco de extinção que, todavia, pode revestir um valor científico e simbólico extraordinário para o plano de salvaguarda da dieta mediterrânica.
A rede temática é uma rede sobre inventariação e classificação das “práticas alimentares e culturais e os estilos de vida” mais representativos da Dieta Mediterrânica e que podem ser recolhidos em vários pontos do país.
Uma rede territorial é uma rede delimitada geograficamente, que, em primeira instância, tem a sua origem na comunidade política e cultural do concelho de Tavira, líder da candidatura, mas que pode ser estendida a outros concelhos algarvios adjacentes ou distantes, que com ele compõem um “território vertical”, isto é, um território cujo corte seja representativo dos vários estratos socioculturais que se estendem do mar até à serra.
No caso da rede temática, estamos convencidos de que o inventário e a classificação das práticas alimentares, (desde a biodiversidade local até à confeção alimentar) e dos estilos de vida (desde a estrutura familiar até às formas de convivialidade, sociabilidade e festividade) merecerão tratamento privilegiado.
Neste particular, sabemos que já estão em curso trabalhos preparatórios de carácter operacional, por via de comissões técnico-científicas que se constituem numa espécie de ator-rede da Dieta Mediterrânica, e, tão cedo quanto possível, pois o plano de salvaguarda será avaliado nos próximos quatro anos em 2018.
No segundo caso, a rede territorial, estamos convencidos de que podem ser considerados duas linhas de abordagem, de primeira e segunda prioridade.
A primeira linha corresponde ao concelho de Tavira, que é, em primeira instância, o rosto da comunidade representativa da parte portuguesa da candidatura.
Neste sentido, a eleição da Estação Agrária de Tavira como sede do futuro Centro de Estudos da Dieta Mediterrânica seria uma excelente escolha para celebrar o arranque do plano de salvaguarda e promoção da Dieta Mediterrânica, tanto mais quanto a Estação Agrária de Tavira dispõe de um espólio valioso de variedades hortofrutícolas, que serão, não apenas no plano simbólico, mas, sobretudo, no plano da biodiversidade local e regional, um ótimo ponto de partida para o lançamento e a promoção da Dieta Mediterrânica.
De resto, esta primeira prioridade é perfeitamente compatível com as micro-redes de salvaguarda de sementes perdidas e espécies autóctones.
No que diz respeito à segunda linha de abordagem da rede territorial, seguindo o critério dos “concelhos verticais representativos”, estamos convencidos de que, em primeira aproximação, uma das zonas mais relevantes para este efeito é aquela que encontramos no cruzamento e na área de influência das estradas nacionais N124, N2 e N270.
Assim sendo, a primeira rede experimental de suporte da Dieta Mediterrânica poderia incluir as freguesias de Martinlongo, Cachopo, Barranco do Velho e Querença no alinhamento da N124, o Ameixial, novamente o Barranco do Velho e Alportel no alinhamento da N2, e Alportel novamente, Santa Catarina e Santa Luzia/Barril no alinhamento da N270.
No prolongamento destas linhas, podíamos ainda acrescentar as aldeias típicas do barrocal, como são Alte, Salir e a União das Freguesias de Querença, Tor e Benafim.
Quer dizer, estaríamos a eleger uma boa parte da Serra do Caldeirão para este efeito, mas, também, a eleger uma zona especialmente atingida pelos grandes incêndios do Verão, onde o risco climático é elevado e onde, por isso mesmo, todas as “práticas alimentares e culturais” lutam abnegadamente pela sua sobrevivência.
Alguns riscos associados à Dieta Mediterrânica
No Algarve, como sabemos, muita atividade depende da estratégia seguida e prosseguida pela indústria do turismo/lazer, em sentido amplo.
Quer dizer, as condições de funcionamento em baixa densidade, que representa a maioria do território da região, só são possíveis se o turismo/lazer, ele próprio, polinuclear e reticular o seu crescimento interno.
Dito de outro modo, o turismo/lazer é o setor-motor, um dos poucos com capital próprio suficiente para fazer uma incursão estratégica no interior do Algarve, criando investimento multifuncional e empreendimentos de fins múltiplos que reconfiguram o território e geram pequenas economias de aglomeração em seu redor.
Deve fazer isto por razões de racionalidade económica e não por meras razões de circunstância ou oportunidade, dado que estamos convencidos de que o futuro da indústria do turismo/lazer depende também da diversificação que for capaz de imprimir ao contínuo campina-barrocal-serra, numa linha de “economia vertical” a que nos referimos anteriormente.
Neste sentido, ainda, uma “economia vertical” é uma espécie de “arquitetura de interiores” que considera e trabalha conjuntamente sobre as infraestruturas, os equipamentos, os corredores ecológicos, a engenharia biofísica, as amenidades paisagísticas, as economias de aglomeração e reticulação, as cargas e a gestão ordenada dos fluxos turísticos para o interior.
Se os atores-rede desta economia vertical não estiverem à altura das suas responsabilidades, a indústria do turismo/lazer continuará, muito provavelmente, a desequilibrar a região, ao mesmo tempo que os programas de índole regional e local, supostamente desenvolvimentistas, terão dificuldade em escapar a aplicações mais redistributivas e, mesmo, assistencialistas.
Debater o desenvolvimento rural do interior e serra algarvios é refletir sobre o futuro de dois terços do território algarvio, é prevenir a região quanto a um possível choque assimétrico, que, de um momento para o outro, pode irromper e devastar a economia costeira, é dar profundidade ao litoral e à campina, é aproveitar territórios em estado preventivo, é, afinal, reequacionar a identidade profunda dos algarvios, num momento em que “as modas identitárias estão na moda”.
É aqui que, na equação desta economia vertical que une litoral-campina-barrocal-serra, surge a Dieta Mediterrânica com fator de reunificação e apelação territorial.
Será a Dieta Mediterrânica um foco resiliente suficientemente forte e capaz de contrariar os riscos de vária ordem que já hoje afetam o interior algarvio?
Os valores culturais, patrimoniais, naturais e paisagísticos do mundo rural são um bem público inestimável cuja fragilidade e vulnerabilidade importa contrariar a todo o custo.
A desertificação, as secas prolongadas, os incêndios florestais, a degradação das reservas naturais de futuro, são uma ferida a céu aberto nos ecossistemas agro-rurais da região do Algarve.
Em que medida pode a Dieta Mediterrânica contribuir para contrariar os riscos climáticos e ambientais associados a um despovoamento destes territórios?
O segundo tipo de riscos que pode seriamente afetar a Dieta Mediterrânica tem a ver com o rejuvenescimento e a sucessão geracional, isto é, com o capital social hoje disponível e o capital social disponível no futuro próximo.
É imprescindível fazer algum trabalho de investigação no terreno da rede territorial de suporte que aqui sugerimos e realizar uma pré-qualificação dos atores disponíveis para este efeito.
As juntas de freguesia podem ser, em primeira instância, um ponto de partida com interesse, mas outras estruturas associativas já existentes podem funcionar como os animadores dos pontos da rede.
Outro ponto da rede com muito interesse, em matéria de capital social, são todas as iniciativas que podem envolver os jovens saídos das escolas técnicas profissionais e superiores da região.
Um outro tipo de risco associado à Dieta Mediterrânica está relacionado com as boas práticas impostas pelo respetivo “caderno de especificações” e, bem assim, as tipologias diversas de certificação e controlo que podem causar danos elevados na micro e pequena agricultura local.
Importa relembrar, mais uma vez, que a Dieta Mediterrânica é uma apelação internacional que não se resume a ser uma “cultura alimentar da escassez e da natureza hostil”, ela é também um estilo de vida e uma antropologia do quotidiano. Uma abordagem meramente produtivista e economicista da DM pode ter efeitos contraproducentes e impactos negativos sobre os modos de produção familiar e artesanal.
Finalmente, um último risco associado à Dieta Mediterrânica está relacionado com a sua política de imagem, ou a sua imagem de marca, e o plano de marketing que for julgado mais apropriado, isto é, com a possibilidade de, no futuro próximo, a Dieta Mediterrânica aparecer travestida de produtos e serviços turísticos de bom gosto e bom senso muito duvidosos.
Se a imagem de marca da Dieta Mediterrânica for confundida com uma sucessão de eventos mais ou menos “turistificados” então o risco de uma “dieta kitch” espreitará a todo o momento.
Nota Final
Em conclusão, a apelação “Dieta Mediterrânica, património imaterial da humanidade” afigura-se como uma oportunidade única para realizar o up-grade da economia local e regional algarvia, em especial a promoção da economia do barrocal algarvio e da economia serrana.
Serve, porém, a advertência para dizer que se deve depositar uma expectativa contida e moderada em tal desiderato.
Para o efeito, a região precisa urgentemente, no plano da microgeoeconomia territorial e dos territórios-rede, de levar a cabo um ensaio experimental, uma rede temática e territorial, que possa lançar as primeiras sementes do que será, no futuro próximo, uma política de certificação regional da dieta mediterrânica.
Este é um desafio de longo alcance e um bem comum inestimável para o país e a região do Algarve.
Recordemos, a propósito, que o primeiro teste, a avaliação do plano de salvaguarda, estará à nossa frente já em 2018.
Em aberto fica, ainda, a possibilidade de delimitarmos uma rede territorial para testar, no terreno concreto da região algarvia, os “encargos e as especificações” desta apelação de prestígio tão portadora de futuro.
Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas