A sala é pequena e as cadeiras rangem, quebrando o silêncio angustiado que se agarra às paredes. As pessoas que lá estão não conseguem estar quietas, levantam-se, dão curtos passeios, contorcem-se nas cadeiras, olham ansiosamente a porta de vaivém.
Quatro pessoas a um canto, contudo, estão a conversar e até se lhes escapa, por vezes, uma curta gargalhada. É impossível não ouvir a conversa, por muito que se queira respeitar a sua intimidade.
Percebe-se que são irmãos, todos já quarentões, que recordam em conjunto peripécias da infância e as reações da “mãezinha”. Espicaçam-se uns aos outros, falando do medo de hospitais de um, “por isso chegaste atrasado”, ou das medidas que serão necessárias daí para diante, “mesmo que a mãezinha não queira sair de casa”, porque não pode já viver sozinha.
A porta de vaivém abre-se e a única mulher do grupo levanta-se de um pulo e vai atrás do funcionário encarregue das entradas. Os irmãos, esses calam-se, aguardam. Ela regressa com os olhos rasos de lágrimas, que tenta esconder com um sorriso tremeliques. “Está mais animadita”, assegura. Um a um desaparecem no vaivém da porta, e quando voltam confirmam sempre, mais para si próprios do que para os outros, que “ela hoje está melhor”, isto em vozes roufenhas ou embargadas.
Também eu olho para a porta e enquanto isso, como se fosse o elástico de uma fisga, viajo, como os quatro irmãos, entre o passado e o presente. Um bocado esbatida – já lá vão mais de 50 anos – surge-me aquela que penso ser a minha primeira recordação do meu irmão. Era Natal e ele está rodeado de uma pilha de brinquedos, sem lhes ligar nenhuma, agarrado a um casaco de veludo vermelho, que embala nos braços gorduchos. “O meu ‘tasaquinho, eu goto muinto do meu tasaquinho!”.
Devo estar a sorrir, porque as minhas filhas olham para mim com um ar esquisito. Portanto, é melhor puxar a fisga da memória em voz alta, para elas não pensarem que a mãe está passada de vez.
E lembro o meu irmão e eu a brincar às escondidas, com o nosso tio pouco mais velho que nós, fruto tardio do segundo casamento do nosso avô. Aproveitávamos ele ser albino, não precisávamos de nos esconder. Ficávamos contra o sol a chamar e ele, coitado, com aqueles olhos sempre vermelhos, ficava cego pela luz. Sim, as crianças são cruéis.
Ou da outra vez, quando ele e eu ficámos no carro, entediados à espera do Pai e a curiosidade foi mais forte. Abrimos a “pasta do negócio” dele, surripiámos uma nota de mil escudos de cada maço que lá encontrámos, entre o medo e a felicidade de estarmos a ficar ricos. Se deu confusão depois, não me lembro.
No tempo do divórcio dos Pais, o meu irmão entrou no meu quarto feito fúria e gritou: “Se eles nos mandam outra vez de avião para o ‘puto’ (Portugal em quimbundo), saltam-me os miolos da cabeça”.
As minhas filhas ouviam e riam na altura certa, embora eu suspeite que conheciam pelo menos algumas histórias de frente para trás, um património familiar regularmente revisitado.
Quando chegou a minha vez de cruzar a porta de vaivém, fui encontrar um homem em coma com tubos a sair da boca e do nariz, outros ligados aos braços, ao peito, até nas pernas, um penso incongruentemente luminoso de tão branco, cobrindo-lhe parte da cabeça.
Disseram-me em voz átona, os doutores, que o prognóstico era muito reservado e se ele acordasse, ficaria com sequelas muito graves. O coma era tão profundo, ”devido aos danos crânio-encefálicos”, que estava no grau 3, o mínimo da escala de Glasgow, usada para avaliar o nível de consciência de uma pessoa, e cujo valor mais alto é 15.
A mais nova das minhas filhas chorou baba e ranho no seu retorno pela porta de vaivém, e à outra acentuaram-se-lhe ainda mais as fundas olheiras. Saímos para a noite fria de Dezembro, num silêncio fungoso, e a mais velha disse então: no Natal, vou fazer arroz doce, em homenagem ao tio. Todas detestávamos arroz doce, a sobremesa preferida do meu irmão e tio delas.
Fico a perguntar-me ainda hoje, três meses depois, para onde iremos nós, quando morremos antes de morrer.
Autora: Conceição Branco é jornalista