Por triste norma, é na hora do aperto que todos nós tendemos a olhar para as coisas com maior clarividência, relegando o supérfluo para o seu devido lugar.
No entanto, qual teimosamente resistente aldeia de gauleses, Portugal, mesmo endividado até à 5ª geração, e numa Europa em colapso iminente (ou a revelar a sua verdadeira face), resiste à clarividência e ao básico bom-senso.
Sintoma disso, agarra em boas ideias que poderiam representar alguma mais-valia e, grotescamente, perverte-as até uma retorcida caricatura que, do conceito original, e já com sorte, apenas conserva o nome.
É o caso das hortas urbanas. As hortas urbanas representam a preocupação de preservar, dentro do tecido urbano, áreas de capacidade produtiva que permitam uma proximidade dos centros de consumo relativamente aos centros de produção. Esta proximidade permite não apenas aumentar a qualidade dos produtos, por supressão dos tempos de viagem, mas também a redução dos preços, exactamente pela eliminação dos longos transportes.
Para além disto, a produção gerada por estas hortas, cuja gestão e manutenção é entregue aos cidadãos, permite um complemento de abastecimento de frescos para os lares destas famílias, não falando sequer nos benefícios sociais (aumento do contacto humano), psicológicos (alívio do stress e sensação de produtividade) e ecológicos (permeabilidade, oxigenação) que a penetração do “campo” na “cidade” representa.
A cidade vive do campo.
Este conceito tem sido um cavalo de batalha do Arquitecto Paisagista Gonçalo Ribeiro Telles, desde há pelo menos 30 anos. Finalmente, começam a surgir sinais de que o seu árduo e incansável trabalho de educação dá frutos.
Mas começam também a surgir as tais deformações grotescas. É que as hortas urbanas devem ser um instrumento de gestão urbana pensado de forma integrada. Pensá-las como retalhos kitsch ou yuppies espalhados pela cidade é um último recurso para núcleos urbanos em que os campos e quintas há muito foram dizimados pelo betão.
Por isso, embandeirar em arco a aposta em hortas urbanas, ao mesmo tempo que se arrasa com campinas e várzeas para mais do mesmo – amontoados de betão – é anunciar, com pompa e circunstância, decoração de interiores num prédio condenado à demolição no dia seguinte.
Mais grave ainda, é destruir o pouco que temos.
Devem ser os campos das periferias urbanas as verdadeiras hortas. Muitas delas, sem pessoal para operar, ou mesmo ao abandono, só precisam do estabelecimento de parcerias inteligentes e mutuamente proveitosas entre privados e autarquias para que algumas parcelas possam ser entregues a cidadãos que, em contrapartida pelos proveitos que da terra retiram, colaboram no esforço geral das explorações agrícolas.
Talvez seja mais interessante do que estar no café, a viver de subsídios ou a lamentarmo-nos da falta deles.
Um País que vota o seu potencial agrícola ao abandono e afogamento por betão não é pobre, é simplesmente estúpido.
A alimentação não é uma questão ideológica. É uma questão de sobrevivência básica e de soberania nacional – aquela que, para além dos já incontáveis atentados que tem sofrido, conhece agora mais um feroz ataque, com o raivoso e abjecto desejo de abolição do feriado do 1º de Dezembro.
Quando a torneira do crédito externo fechar em definitivo, e as importações cessarem por já não haver quem venda fiado a Portugal, descobriremos o significado de apenas produzir cerca de 25% daquilo que comemos.
Até à fome, vamos alegremente brincando ao “Farm na ville”…
Texto de: Gonçalo Gomes
Arquitecto Paisagista
Nota: O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico