Ainda as eleições autárquicas vêm relativamente longe e já há assunto para entreter o pagode.
Na já longa e nem sempre saudável tradição de juntar no último ano de mandato muitas coisas que poderiam ter sido diluídas nos restantes 3/4, as autarquias deste País, e do Algarve naturalmente, andam num frenesim, a preparar obras para ficar no olho e na memória.
Pois bem, a cerca de cinco meses do momento de colocar os papelotes na urna, começa a haver obra para mostrar.
Seja por vontade de criar um campo de treinos para a exploração de Marte, intenção de candidatar-se ao roteiro da próxima visita oficial de Putin a Portugal, desejo de homenagear um iminente título desportivo de uma colectividade de Carnide, como incentivo ao negócio dos óculos de sol ou singela celebração da menstruação, há em Lagoa uma caricata e invulgar “praça vermelha”, que se estende desde o Largo Alves Roçadas, ao longo da Praça da República e da Rua Coronel Figueiredo e até atinge umas ruas laterais.
Bom, vermelha (ou rosa coiso, vá) de acordo com os olhos do normal transeunte, mas tijolo, de acordo com a versão “oficial” da história. Nestas coisas, sempre houve quem visse o rei ricamente trajado, enquanto outros o viam desfilar nu…
Independentemente do veredicto, parece que não se sabe muito bem é quem escolheu, porque se há quem diga que foi a população, esta parece não se ter apercebido de tal facto!
Ele há coisas…
As questões de gosto (atroz ou até mesmo falta dele) são subjectivas. No entanto, neste caso, há um lamentável assalto à identidade do núcleo antigo de Lagoa – por muito que possa já ter sido agredido no passado – quer a nível de paleta de cores, quer de construção do espaço.
Não é que os centros históricos se devam congelar num cenário dos Flintstones, mas daí a transformá-los instantaneamente numa paisagem dos Jetsons (a malta mais nova pode googlar para saber do que se trata)… vai a distância que separa a evolução da aberração. E isto num tempo em que tanto se discute a identidade e autenticidade como marcas diferenciadoras…
De qualquer modo, esta intervenção levanta algumas questões de ordem prática. Desde logo, por força da tremenda luminosidade deste nosso Algarve e da cor (saturante), a contaminação cromática que os reflexos vão causar no edificado envolvente e em tudo o resto é factor de descaracterização e dissonância. Poderão também verificar-se efeitos de alteração microclimática à escala urbana, mas provavelmente insignificantes.
Finalmente, um aspecto mais preocupante, que se prende com a manutenção. Conhecendo o comportamento e durabilidade deste tipo de soluções, bem como os (maus) hábitos de manutenção portugueses, não passará muito tempo até que comecem processos de desgaste e perda de coloração, fazendo surgir o negro do betuminoso subjacente. Nessa altura, a discussão dicotómica em torno de vermelho/tijolo passará para outra dúvida, mas em torno de borrada/nódoa…
Nestas coisas, há o costume de apedrejar os projectistas. É capítulo difícil de avaliar. Em primeiro lugar porque desconheço se os houve. E depois porque, sem saber que programa lhes foi apresentado, as condicionantes e imposições por parte do cliente, o tempo disponibilizado para discussão e amadurecimento das soluções, as limitações orçamentais, etc., etc., não ouso julgar.
Haverá quem ache que estou a ser corporativista, mas lembrem-se que pode nem ter sido a pena da arquitectura paisagista a escrever tão colorida história, já que há por aí muitas outras profissões a mexer nesta poda – até mesmo arquitectos, daqueles que depois acham mal que engenheiros façam arquitectura…
Seja lá quem for que tenha imaginado, o caso presta-se a galhofa, num estilo tragicómico, mas serve, acima de tudo, para chamar a atenção para a importância do envolvimento dos cidadãos no processo de construção do espaço público.
Não apenas para “controlar” mais de perto as opções dos autarcas e refrear possíveis delírios de onanismo estético-intelectual, mas também para, numa atitude mais positiva, os auxiliar.
Pode não parecer, mas desenhar e pensar a gestão do espaço por onde fluem os ciclos fundamentais de uma urbe e onde acontece a vida comunitária é algo extremamente complexo, com imensas variáveis e aspectos que, sem um envolvimento responsável por parte dos destinatários, pode ser labiríntico.
Uma vez que não há detentores da verdade absoluta, uma participação activa e consciente das populações, intervindo proactivamente em vez de reagir preocupadamente, enriquece a experiência, permitindo um trabalho conjunto cujos frutos serão sempre mais coerentes e apropriáveis do que de outra forma.
No fundo, a diferença de recorte entre um tijolo alveolar e um tijolo burro.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)