Mas o Toino, ou melhor, os Toinos e Toinas deste Portugal, como bons e boas amantes de adrenalina, preferem ignorar os avisos da canção popular relativamente aos perigos da bravura do mar e, vai daí, pespegam-se, qual encarnação dos proverbiais heróis do mar, na linha da frente do impacto das ondas.
Depois… bom, depois comprova-se que o mar arrasta multidões!
A recente onda (passe o trocadilho) de estragos que varreu o País nestes últimos dias devido ao impacto costeiro dos temporais, próprios da época, vem novamente chamar a atenção para questões que deveriam ser pensadas conjuntural e estrategicamente.
Desde logo, as alterações climáticas e a forma como afectam a intensidade e periodicidade de fenómenos climatéricos extremos colocam-nos, efectivamente, enquanto jardim à beira-mar plantado, perante desafios para os quais não tomámos nem parecemos dispostos a tomar precauções.
Não só ocupamos massivamente o litoral, como o fazemos de forma displicente, e sempre preparados para o melhor, esperando o óptimo.
Ora, nestas coisas do clima e suas manifestações mais agressivas, que envolvem forças elementares do planeta, convém adoptar uma postura diametralmente oposta, preparando-nos para o pior, esperando o mau. Quando não o fazemos, o resultado é o que se vê: gente em perigo, bens danificados e perdidos e vidas estragadas ou dramaticamente complicadas.
E importa notar que o problema não é só a cultura mirone que nos atrai para a rebentação de um mar tempestuoso, em busca de uma foto, ou simplesmente para poder dizer que se esteve lá e se correu que nem um qualquer Zatopek à frente do vagalhão.
É a cultura de desordenamento do território que nos leva à ocupação desregrada da faixa costeira, que impede a percepção do risco, levando ao desrespeito por limites invisíveis mas bem presentes – e conhecidos – que penalizam severamente quem os ultrapassa. É uma cultura que deposita uma confiança sobrevalorizada nas técnicas disponíveis para “confinar” ou “parar” a força dos elementos. O facto é que as pedras são brinquedos para a força do mar, e os muros e paredões são galgados como muretes. No fundo, é uma cultura de fé, de que tudo vai correr bem. Mas, por vezes, os deuses estão loucos, e a normal poesia do plácido mar espelhando o céu transforma-se numa prosa extremamente contundente.
E não deixa de ser interessante que, quando tudo dá para o torto, todos, de uma forma ou de outra, pagamos pelas más decisões de alguns, e pelos caprichos de outros, sendo que nunca ninguém assume responsabilidade individual pelos seus actos. A culpa é sempre do mar, que por acaso está lá desde sempre…
Alguém sugeria, no éter “internético”, que a Natureza tem uma estrutura feminina, pois embora não se saiba defender, consegue vingar-se como ninguém. Fica a ideia, aproximada à teoria de Gaia.
Exemplos não nos faltam, um pouco por todo o litoral, e sem sequer considerar outros casos, que, não envolvendo o mar, nos mostram a força dos elementos – Madeira e Silves, num passado recente, foram dois deles. Mas centremo-nos no tema em mãos.
O mar é, historicamente, o nosso desígnio.
No entanto, a verdade é que continua a escapar-nos por completo. Não só não o aproveitamos – e aqui havia tanto para dizer – como não o percebemos e, pior, não o respeitamos.
Olhamo-lo como um mero objecto, do qual nos podemos servir a bel-prazer, sempre numa lógica hedonista e imediatista. Não reconhecemos que, na sua complexidade, enquanto sistema vivo dinâmico, com as suas múltiplas faces, o mar pode, entre outras coisas, revelar-se uma força destruidora. E o mar tende a ser bastante daltónico, pelo que não há cores de alerta que nos ajudem.
A verdadeira e mais eficaz prevenção do risco far-se-á no dia em que organizarmos a nossa ocupação da delicadamente equilibrada – e portanto altamente susceptível – faixa costeira tendo em conta a força elementar do mar e os riscos associados, e a forma como isso se traduz espacialmente, condicionando os nossos modelos de utilização do território.
Viver em estreita relação com o mar não implica estar permanentemente mergulhado nele. Implica, justamente, o mais primordial respeito pelas suas características, quer se trate das mais prazenteiras, quer se trate das mais assustadoras. Basta ver que as aves são criaturas dos céus, mas organizam a vida em terra…
Hemingway, n’”O Velho e o Mar”, chama a atenção para o facto de que “se há furacão, a gente, andando no mar, vê os sinais dele no céu, muitos dias antes. Em terra ninguém vê, porque não sabe que distinguir”.
Até que consigamos abrir os olhos para distinguir e precaver as tempestades no horizonte, andaremos, paradoxalmente, a brincar com o fogo.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)