É corrente dizer-se que o Sol é uma das grandes riquezas de Portugal, e do Algarve em particular. Este heliocentrismo, que tem sido motivo de regozijo, está prestes a tornar-se um tudo nada mais problemático.
Mas vamos por partes, e comecemos com os pés bem assentes na terra.
Está em curso, principalmente nas nossas cidades, mas também noutras áreas fora do contexto urbano, de forma mais ou menos vincada, e mais ou menos avançada, um processo controverso, denominado gentrificação. Este palavrão refere-se, basicamente, a alterações na composição de uma determinada comunidade, motivada principalmente pelo aumento do interesse e valor atribuído à localização dessa mesma comunidade.
Passa-se muito, por exemplo, em bairros históricos, que pela sua tipicidade, ambiente social de proximidade e qualidade de vida em geral se tornam atraentes para investimentos imobiliários (normalmente reabilitação) e para classes sociais com maior poder de compra.
A mudança é fundamental à vida, e por norma positiva. No entanto, esta mudança em particular processa-se frequentemente à custa da expulsão das comunidades originais, que foram, justamente, o factor de atractividade inicial. Não uma expulsão física, mas uma expulsão decorrente de uma espécie de rufiagem sócio-económica, baseada no aumento do custo de vida nesses locais, pela valorização do mercado imobiliário e correspondente tributação, pela descaracterização do tecido social original ou pela introdução de novas actividades dificilmente enquadráveis nas dinâmicas anteriores (novos estabelecimentos de diversão, segmentos de comércio novos, substituição de residência por hotelaria, entre outros).
Nesta mudança de maré, quem por norma se vê arrastado para outras paragens são as populações mais idosas (até por pressão dos descendentes que, confrontados com ofertas imobiliárias de valor acrescentado, incitam à deslocação), economicamente mais vulneráveis e/ou com menores índices de instrução. No fundo, prevalece a lei do mais forte.
Desta forma, estes processos facilmente se tornam em reabilitações/revitalizações urbanas “musculadas”, ainda que na base do poder monetário, passando de evolução a saneamento.
O Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) é uma ferramenta de que os Municípios dispõem para, de alguma forma, diferenciarem fiscalmente o seu parque imobiliário em relação aos restantes (seja de forma negativa ou positiva, indo de forma mais ou menos ávida ao bolso do proprietário), com óbvias implicações ao nível de quem ocupa, ou pode ocupar, o mesmo.
Uma vez que tudo paga imposto, menos o Sol e o oxigénio, o IMI tem uma série de coeficientes de composição da bordoada final. Entre eles, um que se chama “Qualidade e conforto” que, por sua vez, é também composto por vários “elementos”. Um desses elementos é o relativo a “localização e operacionalidade relativas”.
Se perdermos tempo de vida a ler as directrizes para apreciação deste elemento (apenas no que concerne a prédios destinados a habitação), descobrimos que contempla aspectos majorativos, minorativos e ambivalentes.
Por exemplo, a orientação do prédio, a localização do piso e a localização relativa no piso tanto podem diminuir como aumentar a factura. Já “áreas especiais, nomeadamente telheiros, terraços, estacionamentos abertos ou similares, em grandes superfícies comerciais ou de serviços ou noutras edificações” servem apenas para somar.
Os alegres contemplados com poluição atmosférica, sonora ou outra, bem como acessibilidades fora do normal, elementos visuais, naturais ou artificiais assim a puxar para o feioso e malcheiroso (ETAR e cemitérios são os exemplos dados), a ausência ou menor qualidade de infra-estruturas/equipamentos de apoio e lazer no condomínio fechado, são aliviados de carga.
Este elemento tinha até aqui um valor “diminuto” (não sendo proprietário, não tenho esta sociedade imobiliária com o Estado, confesso), até um máximo de 5%.
Foi agora anunciada uma (entre outras) alteração ao Código do IMI, passando este valor para um máximo de 20% em termos de majoração, mas apenas para 10% na minoração. Quadruplica na parte do aumento, apenas duplicando na parte do alívio, portanto. Já dizia o outro, que é só fazer as contas, mas assim de cabeça, parece-me muito, ainda para mais em tempos de raquitismo e anemia generalizada das vacas.
Advogando pelo Diabo, por outro lado, e esta vai direitinha àqueles grandes malucos que foram a correr para a Via do Infante aproveitar as “rebajas” de 15% nas portagens, este aumento, também de 15%, talvez se destine a cobrir esse desvario que foi a redução do bilhete das antigas SCUT. Afinal de contas, uma mão lava a outra, e o dinheiro não nasce nas árvores, seus esbanjadores.
Esta medida, de falso “Robinismo dos Bosques” fiscal, alimentada a fonte renovável de energia (valha-nos a sustentabilidade da coisa), só penaliza os remediados e quem menos pode, já que dá um passo de gigante no sentido de transformar boa exposição e boas vistas numa comodidade apenas ao alcance dos mais abastados, e não daqueles que querem ter operacionalidades acima das suas possibilidades.
Posso estar só a ser pessimista, já que muitos dirão que esta medida, traduzida em carcanhóis, não tem grande significado. Nesse caso pergunta-se então para quê, já que é o princípio subjacente o pior de tudo! Temo que venha a ser mais um contributo para os processos de gentrificação, desde logo em áreas litorais (as mais apetecíveis), mas também em todas as outras em que haja interesse em forçar processos de “requalificação” à vassourada, sempre sob o pretexto muito asseadinho das localizações e operacionalidades…
, e já que afinal o Sol quando nasce, também se paga, reformulo: uma vez que tudo paga imposto, menos o oxigénio, é bom que enchamos os pulmõezinhos à fartazana enquanto podemos. Nunca se sabe que impostos o amanhã trará.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)