Enquanto ocorria o atentado ao jornal «Charlie Hebdo», o grupo terrorista Boko Haram levou a cabo, entre 3 e 7 de Janeiro, segundo a Amnistia Internacional, “o maior e mais destrutivo ataque desde 2011”.
No total já foram assassinados mais de dez mil pessoas. Na cidade de Baga, terão sido mortas 2.000 pessoas em poucas horas, 57% da cidade foi destruída e 16 aldeias foram completamente devastadas.
Baga, situa-se a menos de três quilómetros do lago do Chade – uma estratégica reserva de água que serve de fronteira natural aos territórios da Nigéria, Camarões, Chade e Níger.
Os extremistas capturaram mais de 500 mulheres e crianças, as quais, ao fim de quatro dias, foram sendo libertadas, mas só as mulheres mais velhas, as mães e a maioria das crianças, ficando para trás, como reféns, as mais jovens de 13, 14, ou 15 anos, que servirão para estupro e reprodução.
O que separa Baga de Paris? Por um lado, a falta de jornalistas no local, por outro, a necessidade de controlar o acesso da China ao petróleo e na Nigéria, especificamente nesta altura, como represália por ter mudado de fornecedores de armamento, os quais passaram a ser a Rússia e a China, o mesmo é dizer – de financiador! Como se os crimes religiosos fossem mais condenáveis que os crimes económicos.
Creio que o atentado ao “Charlie” no coração da Europa socializante, arauta dos princípios da liberdade de expressão e pioneira – com o Maio de 68 – de todos os movimentos de libertação de mentalidades – tem um maior impacto do que o atentado ao World Trade Center.
Se alguém pensou que os franceses ficariam quietos e melindrados, enganou-se redondamente, não conhece a Europa nem a França. Se o atentado do 11 de Setembro abalou o mundo financeiro e provocou uma alteração profunda nas regras de segurança, o atentado ao “Charlie” abre uma ferida sem precedentes no coração europeu dos Direitos, Liberdades e Garantias.
Comparativamente, os Estados Unidos da América nunca viram as suas capitais destruídas pela guerra e a última em solo americano foi a da Secessão, há 150 anos.
Ao invés, a Europa foi palco de duas guerras mundiais em apenas 21 anos, as quais deixaram marcas profundas em cidades como Londres, Paris, Roma e Berlim, e a última lembrança física da guerra só terminou 1989, com a queda do Muro de Berlim…e ainda só passaram 26 anos!
São milhares de mortos – que muitas vezes nem são contados – todos os dias, em várias partes do mundo, pelas mesmas razões, quase sempre encapotadas pela religião! Religião significa religação ao Divino, aos outros e, em ultima instância a nós mesmos…e fico a pensar…em Mandela e quanto será necessário perdoar e quantas gerações serão necessárias.
Fico a pensar nos Imãs que tiveram a coragem de condenar os atentados de Paris. Fico a pensar nos fiéis das várias confissões religiosas, homens e mulheres de Paz, que não se revêem nestes atos terroristas.
Fico a pensar em todos aqueles que praticam a sua religiosidade em segredo, muçulmanos, judeus, cristãos e budistas, e que sabem que a mudança do mundo coletivo só pode acontecer pela mudança interior de cada indivíduo, assistindo, no silêncio consciente da retorta das suas “vidinhas”, ao vilipendiar das suas religiões, crenças e Fé.
E assim, enquanto esta violência gratuita entra pelas nossas casas, empolada pelos media, como se matarmo-nos uns aos outros fosse uma coisa normal, vamo-nos solidarizando e empatizando, em massa, com os “Charlies Hebdos” e os “11 de Setembro” do dia-a-dia e, dessa forma, vamos perdendo o foco sobre o que é, verdadeiramente, essencial – que na expressão de Saint-Exupéry “é invisível aos olhos”.
Autora: Antonieta Guerreiro é ex-deputada à AR e membro do Conselho das Regiões do IDP