Para a minha avó Margarida
O Natal estava perto, quase aí a chegar, quando a Avó começava a cheirar as nossas cabeças na volta da escola. Dizia ela que o sol punha sabor de cebola nos cabelos, um pecado quase mortal para os netos, mas muito em especial para a neta, que as meninas ficam bem a cheirar a água de rosas e mais tarde a flor de laranjeira.
Esta misteriosa organização dos cheiros, o da cebola, muito menos o porquê de as rosas se anteciparem às laranjeiras, ela não explicava. Nunca valeu muito a pena entranhar a lógica da avó, inflexível, vinda dos cafundós da sua educação de filha de morgado português e mãe da orgulhosa e indomável linha axi-luanda, nomes precedidos de Dom e Dona, dois mundos que se encontraram um dia, e só se separaram depois de onze filhos, uma viagem que os levou do Rio Kwanza até ao Cunene, à morte dela e a quase loucura dele.
Lógica rígida e inflexível, com ela tudo acontecia sempre da mesma maneira e por isso, nós, meninos de periferia quase rica, com direito a vivenda, carro, criado de cada um, apesar da pele morena, como instava a professora do colégio, nunca mulata ou mista de raça, sabíamos ser a festa sempre pré-anunciada pelo cheiro que exalavam as cabeças, depois de valentes correrias ao sol escaldante de Luanda.
Portanto, quando chegava Dezembro, a Avó decidia menos corridas no sol, nem se atrevessem a saltar, a neta então! A neta que passava mais tempo em cima dos muros e das árvores do que no chão, adorava carrinhos de rolamentos, campeonatos de berlinde e de peão e dava e recebia murros de fúria. Como daquela vez quando saltaram os dentes da frente do primo, mariquinhas pé de salsa! queixinhas! a contar na mesa do lanche da bicicleta e do mergulho na praia em cuecas, finalmente livre de fato de banho, com os amigos do peito a olharem de soslaio, meninas de África crescem depressa, nove anos e já se esboçam feitios nas ancas e nos mamilos.
A Mãe desconseguia de intervir na hierarquia dos odores da sua própria Mãe, para sempre espartilhada entre as regras e os cheiros da sua própria infância, ela a cheirar a água de rosas, esfregada a cara antes da ida para o católico colégio, e a flor de laranjeira quando aos dezoito anos saiu de lá, escassos três meses se passaram entre ser menina e senhora dona, de casa posta e marido para cuidar. Era o futuro das meninas, quando filhas de mãe, principalmente com mãe a quem chamavam Dona.
A guerra surda entre Avó e neta tinha o seu clímax quando chegavam as férias do Natal da escola. Portugal, desde o Minho até Timor, a seguir o mesmo calendário da pátria continental, sem ligar o salazarista regime se as estações estavam ao contrário. Hemisfério Sul com Dezembro a pedir praia, brincadeira na rua, calções, picolé de gelo, banhos de mangueira no quintal e noites de estrelas quentes para ouvir as histórias da lavadeira Isabel. Hemisfério Norte a exportar, além do horário escolar, pinheiros com neve de algodão, sinos e presépios, lareiras, mundo estranho e longínquo.
Um dia o sabor da cebola terá sido mais forte, a paciência adulta menor, maior a impaciência infantil, Avó inflexível – não vais para o sol -, neta proclamando Eu vou!, e a Mãe, de aflitos, para desconversar da briga, propondo uma outra árvore de natal, a mais diferente de todas, nunca vista.
Chamou-se o Pedro, gigante bom, cozinheiro, arranjador de carrinhos de rolamentos partidos e caçador de menina em cima dos muros, a voz doce a aliciar descidas rápidas com a promessa de batata-doce ou maçaroca assada, funji de mandioca com conduto de peixe seco no óleo de palma, ao invés do jantar de bife raspado da ementa familiar.
A Mãe mandou e ele voltou com a testa suada, a carregar com cuidado de jardineiro uma das bananeiras do fundo do jardim, as raízes enfiadas na terra provisória do balde do lixo, antes desinfectado e esfregado com afinco até fazer brilhar o zinco pela Adelaidinha, menina-criada, afilhada de nome, com serventia de noite e de dia, trocada por cama e mesa.
Nas folhas largas da bananeira, a neve de algodão não pegava, nem os pingentes de cristal. Foi preciso descobrir pitangas, vermelho sangue, prender cordel, a Mãe a passá-lo, com delicadeza, por entre as fissuras desenhadas pelo vento no folhedo tenro e frondoso. Depois os cajus, a pingarem sumo, da cor do sol. As goiabas ficaram ao pé das bananas, quase, quase maduras, e até houve lugar, na terra escura e cheirosa, para uns tomates suculentos, a amparar o tronco tenro, a segurar as velas que iluminavam com luz doce e misteriosa todos aqueles odores coloridos.
Estes ficaram, para sempre, os cheiros do meu Natal.
(Estória inserida no livro Presépios de vários autores, da Editora Colibri 2005)